Um ponto por vez
Se as relações humanas, e o amor “romântico” em particular, são temas fundamentais para o cineasta norte-americano Paul Thomas Anderson, em Trama Fantasma (2017) ele os alça a níveis de refinamento e sutileza certamente notáveis. O roteiro se desfaz das várias subtramas tão características do diretor de Boogie Nights (1997) e Magnólia (1999) para contemplar a peculiar relação entre o costureiro Reynolds Woodcock e Alma, sua musa. Com isso o filme retoma em muitos aspectos o ótimo Embriagado de Amor (2002), mas para ultrapassá-lo em grande estilo. Logo de cara teve seis indicações para o Oscar, incluindo melhor filme, diretor e ator, duas para o Globo de Ouro e quatro para o BAFTA.
Daniel Day-Lewis interpreta um homem metódico, renomado entre a realeza e a elite britânica, que parece não dar muito espaço para relacionamentos afetivos. Nostalgicamente apegado aos cuidados da falecida mãe, que lhe iniciou nos segredos da alta costura e ainda lhe ressurge em sonhos e sensações, tem ao lado a irmã Cyril (Lesley Manville), que conduz com mão de ferro as atividades da casa. Não é um quadro particularmente favorável para Alma (Vicky Krieps), garçonete que logo atrai o costureiro, aparentemente dado a encantar-se por mulheres pelas quais rápido se desinteressa.
Trama Fantasma traz um par amoroso improvável, em abordagem que combina romance, suspense e doses suaves de fantasia. O senso de humor de Anderson continua presente, envolvendo os traços psicológicos de seus personagens, a rigidez obsessiva de Reynolds, por exemplo, que surge algo graciosa e despsicologizada, o que favorece em muito a narrativa. O contraponto que facilita essa operação, de converter o julgamento em simpatia, é o olhar amoroso de Alma. O sentimento que os une – da ordem do arrebatamento, na visão de Anderson – tem a força para transformá-los talvez não por completo, mas o suficiente para viabilizar-lhes os desejos.
Assim, o tímido retraimento de Alma, por vezes ambíguo numa aparente submissão, vai aos poucos cedendo espaço a um vigor persistente, capaz de fazer frente às defesas de Reynolds. Já o costureiro terá de encontrar meios mesmo excêntricos como ele próprio para neutralizar os impulsos que o impedem de viver pleno ao lado daquela a quem escolheu. A clara dicotomia dessa relação se repete em gênero e grau tal como em Embriagado de Amor, sendo no entanto refinada pela sóbria interpretação do elenco em articulação com o primor da fotografia e a luxuosa ambientação.
A câmera de Anderson está mais contemplativa e encontra uma cenografia de época imprecisa, algo em torno dos anos 1950, que enquadra nada além do essencial, o que no limite transfigura as próprias convicções morais do protagonista: a medida ideal da beleza, despojada dos excessos que caracterizam a vulgaridade e a luxúria. Suas criações são consoantes ao ambiente plástico do filme, dos detalhados elementos de cena, xícaras, sofás, tesouras, janelas, cortinas, escadarias que são verdadeiras obras de arte, passando pelas luzes pastéis da fotografia. É o reconhecimento intuitivo dessa medida algo mágica que une o casal. Alma corporifica as aspirações de Reynolds: sem ser óbvia, sua beleza se afirma numa conjunção de sutilezas.
Apesar disso, o que permanece ainda entre eles, como muro ou obstáculo à consumação do amor, é de ordem mais trivial: são os traços de personalidade, os hábitos sedimentados de cada um, em particular do genioso costureiro mas também da simplicidade originária de Alma. Como em Embriagado, tais arestas se apresentam como ruídos, tanto na partitura dos personagens como nos arranjos formais. Seja pela presença de eventuais cortes assimétricos, em abalo à temporalidade serena da montagem, seja pela interlocução constante com a trilha sonora, assinada por Jonny Greenwood, do Radiohead. O timbre de um piano em arpejo, com poucas notas, predomina nas melodias dos bons momentos. Já as passagens mais atribuladas trazem um certo caos dissonante, mantido sob o devido controle.
Essa precisão da trilha compõe a todo o tempo com a interpretação do elenco, com efeito em Day-Lewis, capaz de conjugar um personagem complexo e cheio de manias com uma atuação autêntica e natural, passando ao largo de qualquer afetação. No caso de Alma, sua reserva é valorizada pela fotografia, que combina alto apuro pictórico numa estética casual. Os enquadramentos propõem um sensível jogo de cores, entre o azul e o verde, o vermelho, o rosa e o amarelo, que surgem ora nos vestidos criados por Reynolds, ora nas luzes que pintam os ambientes, onde os personagens muitas vezes repousam em imagens exuberantes.
É preciso, no entanto, não confundir a direção de Paul Thomas Anderson apenas com o seu estilo marcado de filmar. Suas qualidades tanto mais se evidenciam no retrospecto de uma filmografia em evolução, de que Trama Fantasma pode representar uma espécie de síntese. O melhor exemplo disso é a antológica chuva de sapos de Magnólia, artifício absurdo tratado como real e que tem o efeito de virar tudo de ponta-cabeça. Em Trama Fantasma os sapos são depurados em inofensivos cogumelos, num toque de fantasia a meio caminho dos sentimentos mais íntimos dos personagens, segredo alquímico que Alma levará até os instantes finais.
De maneira semelhante, as memórias da mãe parecem constituir o mais forte indício da fantasmagoria aludida no título. Mas sua extensão pode ser mais profunda. Vai além de um suposto Complexo de Édipo mal-resolvido que resulta em excesso de autoconfiança por parte de Reynolds, sua incapacidade de assumir compromissos. Trata-se também do rígido jogo de defesas e entregas que lhe sustentam alguma ilusão de controle sobre Alma, de certo modo projetando-a na mesma dimensão espectral da mãe. Mas a ideia de trama, do título em português, não é tão expressiva como a linha (thread) do original em inglês. A linha melhor perpassa as conjunções do acaso e da paciência, um ponto por vez: enquanto Alma persiste em sua espera, Reynolds mal percebe que é envolvido pela porta dos fundos.
Por fim, não se pode deixar de lado a presença soturna de Cyril, cuja influência sobre o irmão é tão significativa quanto ambivalente. Os dois chegam a formar uma aliança ideal, ao menos nos negócios. A gestão rigorosa do atelier fornece a estrutura necessária ao talento criativo de Reynolds. Mas tal estabilidade é aparente, na medida em que se funda e perpetua a prisão neurótica do costureiro. A herança fantasmática da mãe, encarnada por Cyril, termina por absolver a ambos de suas limitações afetivas, devidamente sublimadas na exuberância dos vestidos, o que também pode metaforizar o artista no testemunho do próprio Anderson. Lesley Manville está impecável no papel e, numa construção baseada em olhares e insinuações, teve várias indicações como atriz coadjuvante, entre as quais para o Oscar e BAFTA, logo ao lado de Day-Lewis num ranking de atuações notáveis.
Trama Fantasma é uma obra de primor no equilíbrio que alcança em todos os sentidos. É um filme além de tudo oportuno em meio às convulsões dos dias de hoje, pois lembra que antes é o modo de olhar, e a consciência correspondente, que de fato atuam sobre a realidade. Para nossa sorte, a vida conterá sempre os desafios da coexistência dos afetos, em que vivem as muitas vezes irredutíveis idiossincrasias pessoais. A vida é acima de tudo uma experiência sensível e estética que nenhuma linguagem, ideologia ou razão pode reduzir. É o que Anderson deixa entrever nesse universo em que fantasmas devem se tornar amigos, ou pelo menos ser tolerados, convertendo neuroses em qualidades, com a presteza de um bom costureiro. Regra básica para o convívio, que mais do que nunca se faz urgente resgatar.
* Artigo originalmente publicado na revista cultural Mínimo Múltiplo, em julho de 2018.