Próteses para o gesto
Quando me coloquei diante do trabalho, tendo o espaço tingido em neon azul-metálico, de imediato pensei em Georges Segal. Mas por quê Segal? Refleti por um instante e me dei conta que o que Segal faz é retirar a cor da pele humana para congelar o tempo, e assim nos espelhar tal como somos na cultura de consumo: pseudo-sujeitos, espectros. E foi precisamente essa a sensação que tive quando o ambiente da galeria* foi tomado pela luz azul e diante de mim se impôs aquele frio outdoor em neon: naquele momento era eu uma das estátuas brancas de Segal.
Compreendi que a questão era produzir no sujeito essa experiência de suspensão, tirando-lhe momentaneamente a sensação de existência. E isso acontece, creio, por uma série de deslocamentos sutis na ordenação temporal dos elementos. A escolha dos materiais traz uma espécie de dialética do tempo: se o acrílico é um elemento cotidiano e contemporâneo, a luz neon nos envolve numa nostalgia indeterminada. O mesmo ocorre com a estrutura de aço que amarra o trabalho: por um lado ela remete cotidianamente à forma do outdoor publicitário, por outro nos traz de volta à abstração concreta e auto-referente do minimalismo.
A palavra surge como que para suavisar a tensão produzida nos materiais. E é claro que não por acaso vai remeter a Joseph Kosuth em sua apropriação tautológica do neon: o “gestual” aparece em script, que é a versão tipográfica da caligrafia manual, será uma ironia? Da mesma forma, os cortes que se desenham nas chapas acrílicas só são possíveis pela evidente precisão do laser, outra vez colocando a liberdade do gesto em dúvida ou em dependência pelo seu encerramento no interior da materialidade e da tecnologia.
É claro que para uma contemplação desprendida, o trabalho permite o pessimismo tanto quanto o otimismo: se a potência humana do gesto ri-se da estrutura metálica em sua inabalável fulgurância azulada, cuja luminosidade transcende por refração para além dos domínios da tecnologia, em última análise não se vê livre da sentença de que é também ela, a tecnologia, que o permite brilhar. Basta tirar o fio da tomada e a luz se apaga, o outdoor perde seu poder e o espaço volta a ser cotidiano, restituindo nossa existência comum: restará saber se, diante de tal oportunidade, saberíamos ainda o que fazer de nossos gestos.
* Texto produzido à respeito da instalação Através do espelho como parte do catálogo da exposição “Na real, não era isso”, realizada na Plataforma Espaço de Criação, em Porto Alegre, agosto de 2013.