O realismo do instinto
“Bem-vindo a Nova York” (2014), de Abel Ferrara, é um desses filmes que sintetizam um certo estado de coisas, sobretudo por se basear num episódio real e recente da vida de uma personalidade pública. Devereaux é um proeminente político francês cotado para ser presidente. Numa viagem de trabalho a Nova York, porém, ele é acusado de abuso sexual por uma camareira do hotel e acaba preso.
Tanto o diretor Abel Ferrara como o ator Gérard Depardieu, no papel de Devereaux, confirmam, sem demonstrar maiores preocupações, que a história se baseia no incidente ocorrido em 2011, quando Dominique Strauss-Kahn, então diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi preso nos Estados Unidos sob acusação de abuso. A inspiração no caso é explicitada nos letreiros iniciais, mas logo que o filme arranca se vê que as semelhanças vão além da simples apropriação: não há dúvida de que se trata da mesmíssima pessoa. Se certos elementos são alterados, não é para escapar da realidade, mas justamente para estabelecer uma intertextualidade com a mesma.
De carreira prolífica e algo irregular, Abel Ferrara, no entanto, é autor de algumas pequenas obras-primas do cinema independente nova-iorquino, como o clássico “Vício frenético” (1992), com Harvey Keitel, “Olhos de serpente” (1993), no qual o mesmo Keitel contracena com Madonna − ambos em performances viscerais −, e “Maria” (2005), com Juliette Binoche, premiado no Festival de Veneza. Em todos, Ferrara está à vontade, dissecando a vida de pessoas comuns, que, apesar de todos os esforços, invariavelmente submergem aos próprios vícios e fraquezas, drogas, bebida, sexo, violência. São pratos cheios para atuações impactantes, levadas ao limite pela conhecida habilidade do diretor.
Esses elementos estão presentes em “Bem-vindo a Nova York”, que segue abordagem semelhante aos seus últimos filmes na investigação da natureza da realidade, ou das imagens da realidade confrontadas com suas versões. Se em “Olhos de serpente” e mais recentemente em “Maria” o diretor deflagra múltiplas narrativas ao redor dos personagens, colocando em cheque seus estatutos de contexto e identidade, tais recursos retornam agora de forma mais incisiva: a realidade em questão é o rastro deixado pelo escândalo de Strauss-Kahn através da mídia, pedaços de imagens e de discursos de consistências variáveis que são o único meio de aproximação com a origem dos acontecimentos.
De um lado, o fato de que, por alegada falta de credibilidade da vítima, o réu foi absolvido no âmbito judicial real. Sentença que não foi suficiente para a imprensa, cuja devassa na vida de Dominique levantou outro suposto episódio de abuso, o qual, mesmo não sendo provado, é usado no filme como fato − fictício − consumado. O filme, assim, traz um Devereaux abertamente culpado, explorando sem pudores suas piores maneiras, a compulsão física às raias da brutalidade, autorizada pelo poder e também por conta dele escamoteada. Apresenta como sua verdade, na forma da ficção, a latente versão do caso que a imprensa produziu à época: a culpabilidade do réu que, no entanto, não se provou e não se converteu em punição.
É esse jogo entre texto e interpretação, em que o filme assume uma posição em lugar do público diante do escândalo real, então remontado através de suas versões, que faz “Bem-vindo a Nova York” extrapolar a condição ficcional e mesmo o documento. Se faz parte do estilo de Ferrara mimetizar os aspectos mais rudimentares da realidade, numa gramática que oscila entre o naturalismo extremo − focado em particularidades quase escatológicas − e o documental − no comportamento próximo-distante da câmera −, é evidente também o interesse do autor em suspender o filme entre os indícios de verdades possíveis, propondo uma peça narrativa que se funda sobre o mesmo tipo de ambiguidade com o qual lidamos diariamente, a pseudoautenticidade dos nossos perfis sociais e as versões noticiosas de todos os gêneros ofertados pela mídia.
É certo que o cinema de Ferrara vem se mantendo à margem de qualquer maniqueísmo. Lembremos a brilhante sequência inicial de “Vício frenético”, em que Keitel − um típico pai de família da classe média de Nova York − mal espera os filhos saírem do carro, ainda em frente à escola, para calibrar os ânimos com cocaína antes de mais um dia de trabalho como policial. Optando por uma cumplicidade aberta com seu protagonista, testemunhando sem censuras toda uma acidentada trama de caráter, o que temos para além do estereótipo é um homem, por vezes brutal, é verdade, mas ainda assim um homem em flagrante estado de ação, reação, instinto e sofrimento.
Nesse aspecto, em “Bem-vindo a Nova York”, é sem dúvida marcante a atuação de Gérard Depardieu, que está entregue ao projeto, vivendo na carne a experiência metalinguística proposta por Ferrara − enquanto ator, ele chega a falar sobre o próprio personagem no começo do filme. E vai além: empresta a crueza de seu corpo, envelhecido e gordo, para cenas de sexo e intimidade que estão muito distantes de qualquer sensualidade, mas que ainda assim jogam com o fetichismo do olho, apostando nos desequilíbrios entre a presença da câmera e a intensidade da atuação.
Partindo desse encontro de mundos, as versões da ficção e a sua hipersemelhança com a realidade, Ferrara e Depardieu produzem condições singulares para pensar o tempo em que vivemos. A localização do filme em Nova York faz pensar na escolha de Steve Mcqueen para filmar “Shame” (2011). Não por acaso, o ator Michael Fassbender desempenha papel semelhante: um homem sem controle sobre os impulsos sexuais. Em ambos, os estigmas do poder: o financeiro em Fassbender; o político em Depardieu. E ainda outro paralelo: os dois filmes abstraem o que está ao redor do drama íntimo dos personagens. Nova York se torna à noite um pano de fundo onipresente em luzes difusas. Durante o dia, resume-se a uma sucessão de passagens, ruídos cortados, trânsito e cambiantes esboços humanos. Na maior parte do tempo, os personagens estão em automóveis ou habitam não-lugares, hotéis e apartamentos onde se desnudam em seus vícios e carências.
A câmera de Ferrara é voyeurista até o ponto em que se liga à compulsão de seus personagens. Se o vício coloca o corpo numa vertigem que sempre o leva de novo à fonte da adicção, a câmera prende o olho a esse pulsante objeto de fetiche. No caso de Ferrara, a degradação que se desencadeia entre o movimento compulsivo de desejar e obter e assim desejar mais sem jamais se saciar. Mas o filme nos trai naquilo que nos incita a desejar, tal como o prêmio trai ao fetichista, a droga ao viciado. A espiral de agressão, sexo e descontrole que se apodera de Devereaux estava lá o tempo todo, mesmo em latência. O que põe uma lente de aumento sobre ela é a câmera, que aqui em particular também denota a mídia e, por conseguinte, o público. É nessa tangente delicada que o diretor situa, claro, o problema da moral. Como o próprio Devereaux vai refletir em um momento de êxtase, nele não habita qualquer culpa, ele sabe o que ele é. A moral está sempre no olho − e no olho do outro, para o bem e para o mal. Conflito sem solução, a ele cabe viver o que tem para si, a obstinação pelo poder rebatida na compulsão do corpo, e por fim sofrer as consequências.
Nos últimos anos, tem-se visto certa demanda do público por filmes que tenham algum vínculo verificável com a realidade, fenômeno que, aliás, não se restringe ao cinema. É claro que isso tem relação com o mundo em que estamos: a onipresença do “outro” a um clique na internet; o circuito fechado das redes, que repetem à exaustão versões e opiniões nem sempre tão diversas para os mesmos fatos; a premência da mídia, em especial a televisiva, pela ficcionalização da realidade, em que os programas de jornalismo investigativo são exemplo, tendo no outro extremo o realismo forçado dos reality shows − cujo formato tem se hibridizado em praticamente todos os gêneros −, pretendendo fazer “verdade” a partir de realidades condicionadas pelo espetáculo, portanto indubitavelmente ficcionais. Tal é o estado de coisas, de percepção e discernimento das coisas que Abel Ferrara vem trair em uma poética pouco dada a concessões. Sua abordagem multiforme e ambígua não permite esquemas manjados: universo de verdades parciais, como aquelas em que o poder, a mídia e o dinheiro em seus jogos de interesses forçam reinserir o cidadão comum − e em nada inocente − todos os dias. Se, como afirmou Baudrillard, o cinema tradicional ficcionaliza a realidade e a televisão ficcionaliza a própria ficção − produzindo a falsificação −, com que tipos de realidades, ou ficções, estamos lidando em nossos dias?
* Artigo originalmente publicado na revista cultural Mínimo Múltiplo, em novembro de 2014.