Tecnologia e Arte: Narrativa e fluxo na imagem movimento
A história do ser humano também é, de certa maneira, a história das coisas, dos objetos que utilizamos para os mais diversos fins. Em outras palavras, técnica e tecnologia perfazem o cotidiano desde os tempos da pedra lascada, ela própria um objeto, um instrumento. Nesse sentido, há muitas maneiras de abordar a relação entre sujeito, objeto e natureza, círculo de três pontas que sintetiza o movimento da tecnologia em todas as épocas: o sujeito usa o objeto técnico para se relacionar de algum modo com a natureza que o circunda. Quer seja extraindo dela o que deseja, adaptando-a às suas necessidades de ser e estar, protegendo-se de seus perigos, ampliando suas potencialidades, enfim criando novos mundos[1].
A abordagem trazida por Vilém Flüsser é particularmente instigante para o contexto da arte e, em especial, desta pesquisa. Para o autor, todo objeto técnico contém em si um conjunto de conhecimentos, portanto uma inteligência que sempre está pressuposta em seu uso[2]. Nesse sentido, não há diferença entre os suportes − manuais, mecânicos − da arte tradicional e os suportes eletrônicos e digitais que estão implicados em parte relevante da produção contemporânea de arte: ambos são tecnologia desenvolvida, constituídos por conjuntos de conhecimentos e inteligências que são supostas em suas aplicações.
No campo da arte, tais condições desdobram certas consequências, em geral bem sabidas: os objetos e técnicas, com seus conhecimentos subentendidos, determinam em parte o próprio fazer artístico, na medida em que, primeiro, exigem do artista o conhecimento e o domínio de suas técnicas e, segundo, definem certos limites − físicos, estéticos − para a criação. Do que decorrem certos clichês, não necessariamente desprovidos de razão, de que a qualidade da obra depende do domínio do artista sobre as técnicas e tanto mais da capacidade do artista para superá-las, manipulá-las, subvertê-las.
Isso é sem dúvida verdadeiro e verificável ao menos desde a pintura clássica, na medida em que os conhecimentos científicos, matemáticos, perspectivos e o paulatino desenvolvimento das técnicas de observação, que logo vão incluir a fotografia, constituem toda uma inteligência da própria pintura, determinando seus modos de expressão e, principalmente, seus desenvolvimentos. Ou seja, técnica e tecnologia são partes indissociáveis da estética, pois que a atravessam, a determinam.
O fazer artístico, portanto, dialoga o tempo todo com os instrumentos, suportes e modos de utilização dos dispositivos técnicos. O processo de criação nunca é puro, voltado apenas para si mesmo, ainda que o possa desejar. Não existe pintura pura, como pensar a pintura na pureza de suas questões essenciais, como queria Clement Greenberg à respeito da pintura modernista norte-americana. Por mais que, nas palavras do crítico, a “planaridade da superfície pictórica” constituísse a essência da pintura, a “realização de sua vocação”, tal condição elementar ainda estaria se construindo sobre uma tela de tecido, ou seja, um suporte técnico, portanto um a priori no melhor sentido kantiano, impuro por natureza[3].
É importante observar, no entanto, que sobretudo ao longo da modernidade o desenvolvimento tecnológico tenha se feito sentir de modo contundente em todas as esferas das sociedades. No caso da arte, é evidente que a tecnologia em muito ultrapassou a simplicidade de um retângulo de madeira coberto de tecido, sobre o qual se aplica tinta líquida com a ajuda de pincéis. Em muitos casos, a técnica passou a constituir a maior parte e às vezes toda a obra. Sem contar que, paralela e contrariamente à arte, o mundo dos espetáculos sempre perseguiu acriticamente as evoluções da técnica, que muito o beneficiavam. Para alguns artistas, assim, incluir o uso da técnica em seus questionamentos estéticos passou a ser um modo de representar − e criticar − um mundo ele mesmo atravessado inelutavelmente pela tecnologia.
É neste ponto que as idéias de Flüsser surgem com especial relevância. Há sem dúvida um diálogo de entusiasmos com Walter Benjamin na medida em que ambos encontram na fotografia o mínimo denominador comum, átomo ou microcosmo universal, para pensar toda a arte que se desenvolve a partir de aparatos tecnológicos de constituição mecânico-eletrônica. Nas palavras de Flüsser:
As imagens técnicas são produzidas por aparelhos. Como primeiro delas foi inventada a fotografia. O aparelho fotográfico pode servir de modelo para todos os aparelhos característicos da atualidade e do futuro imediato. Analisá-lo é método eficaz para captar o essencial de todos os aparelhos, desde os gigantescos (como os administrativos) até os minúsculos (como os chips), que se instalam por toda parte. Pode-se perfeitamente supor que todos os traços aparelhísticos já estão prefigurados no aparelho fotográfico, aparentemente tão inócuo e “primitivo”. [4]
Se Benjamin já chamava a atenção para a fotografia como um divisor de águas nas sensibilidades modernas, produzindo um universo de imagens mediatas que, juntamente com a velocidade, a propaganda e o espetáculo constituiríam, na vida urbana, uma multiplicidade de realidades a partir da fragmentação e relativização do tempo e das percepções[5], Flüsser vai ainda além ao problematizar a inteligência embutida no aparato fotográfico e suas implicações.
O filósofo observa que a câmera fotográfica, enquanto máquina de captura de imagens, contém em si todo um conjunto − complexo − de conhecimentos científicos que a tornam possível enquanto dispositivo. Tais conhecimentos são antes discursos, texto que se materializa nos aparatos. De modo que para Flüsser não pode haver distinção entre os discursos que constituem os aparatos e o uso dos mesmos seja qual for a finalidade. Ou seja, o emprego da câmera fotográfica para produzir arte é de todos modos pressupor o texto que a perfaz e mais: compreender que a imagem nela produzida é feita de texto. Sob tal perspectiva, Flüsser vai nomear a câmera de “caixa preta”, uma maneira de chamar a atenção para o que se esconde em seus intrincados mecanismos técnicos. Com isso o filósofo sinaliza a necessidade do usuário conhecer e compreender em profundidade os discursos − muitas vezes ideológicos − da caixa preta, para só então ser capaz de utilizá-lo sem ser por ele utilizado.
Não será distante a analogia, outra vez, com a pintura: todo pintor deveria conhecer bem o que se escondia sob a aparência da técnica, os suportes, instrumentos, as regras do jogo que, sabemos, remetiam aos valores e hierarquias sociais de uma época, de que a academia era a legítima representação. O caso da tecnologia que se desenvolve a partir da fotografia traz, evidentemente, uma série de complicações adicionais: a complexidade do aparato é tanto maior quanto mais complexa se tornou a sociedade moderna − não por acaso apelidada de “tecnológica” − em relação às épocas que a antecederam. Além disso, tais complexidades acabam servindo como o pretexto ideal em que a maioria dos discursos ou textos se podem infiltrar sem serem notados, demandando conhecimentos muito mais volumosos e elaborados para a sua elucidação e entendimento crítico.
Antes da caixa preta, porém, Flüsser procura definir o que entende pelo usuário dos aparatos tecnológicos, no caso a câmera fotográfica. As considerações do filósofo são complexas e cobrem uma série de elaborações à respeito da constituição da imaginação, definindo o que é imagem, o que é texto e suas expressões generalizadas nas sociedades através dos tempos. Voltarei com mais detalhe a esses temas, pois agora o que interessa são as questões que respeitam ao sujeito. Em síntese, Flüsser vai distinguir o sujeito operário do sujeito lúdico, ativo. No primeiro caso, trata-se do usuário comum, naïf, que toma o aparato munido de conhecimentos técnicos básicos, inconsciente dos discursos da caixa preta e das suas próprias potencialidades como criador. Tal sujeito replica no mundo as imagens técnicas que já estão em movimento, dando manutenção ao status quo estético-cultural de sua época[6].
Nos interessa, obviamente, o segundo caso, quando entra em cena o sujeito ativo, que de modo entusiástico será chamado por Flüsser de homo ludens, potencialidade que ele não circunscreve a ninguém em especial, mas sim condena a toda humanidade de uma vez só:
Aparelho é brinquedo e não instrumento no sentido tradicional. E o homem que o manipula não é trabalhador, mas jogador: não mais homo faber, mas homo ludens. E tal homem não brinca com o seu brinquedo, mas contra ele. Procura esgotar-lhe o programa. Por assim dizer: penetra o aparelho a fim de descobrir-lhe as manhas. De maneira que “o funcionário” não se encontra cercado de instrumentos (como o artesão pré-industrial), nem está submisso à máquina (como o proletário industrial), mas encontra-se no interior do aparelho. Trata-se de função nova, na qual o homem não é constante nem variável, mas está indelevelmente amalgamado ao aparelho. Em toda função aparelhística, funcionário e aparelho se confundem.[7]
O sujeito é atravessado pela “aparelhística”, como diz Flüsser, porque antes o é a sociedade tecnológica, constituindo sua sócio-política um misto complexo de políticas sócio-estético-científicas, de que os aparelhos são vetores. Tal sujeito, podemos concluir, tem apenas duas opções: deixar-se ser um dado, um número, instrumento dos instrumentos, portanto replicador de mensagens e imagens que dão manutenção aos sistemas técnicos em vigor; ou, por outro lado, agir através dos aparelhos, conhecendo suas “manhas” e discursos, decifrando seus textos para assim dominar a técnica, tê-la como aliada de sua criação, propondo mensagens e imagens novas, sobrevoando o status quo da tecnologia.
Vídeo, janela e projeção
A vídeo-instalação é por definição um híbrido, um complexo ou um misto, como gosta Bergson[8]. Um misto, aliás, tecnológico em todos os sentidos, bem ao gosto de Flüsser. Convergem na vídeo-instalação a linguagem do cinema mas também a do vídeo, que evidentemente deve ao cinema mas, por sua natureza ligada ao eletrônico (o cinema tem origem mecânica, analógica), se torna uma linguagem experimental independente no campo das imagens contemporâneas. Esses dois desdobramentos da imagem em movimento, de um lado o cinema como pensamento, como montagem, de outro o vídeo como liquidez e fluxo, vão convergir, e então se reencontrar, na projeção: a projeção é o modo de apresentação do cinema e será um dos modos de articulação do vídeo na instalação.
Diante disso é útil estabelecer algumas definições, as quais podemos dividir entre aparatos de captação e de apresentação. Ambos estão articulados entre si, se supõe de alguma maneira, pois que a escolha de determinado dispositivo de captação já limita as opções sobre os modos (e no caso os modos tecnológicos) sobre os quais aquilo que se produz será mostrado. A projeção, no caso, é um modo cinematográfico, portanto mecânico, linear, de apresentação. Afinal, a tecnologia implicada na projeção, mesmo nas atuais projeções digitais, se dá pelo meio ótico, o uso da lente e da luz, os mesmos princípios do projetor mecânico do cinema tradicional.
No entanto, a captação das imagens é digital, e mesmo que as atuais câmeras também se utilizem de lentes e obturadores diafragmáticos similares às câmeras analógicas, as imagens digitais, como sabemos, são armazenadas como códigos e não como imagens, códigos que podem ser lidos e alterados em outros dispositivos, com os computadores. Tal característica é o que diferencia a imagem analógica da imagem digital, por assim dizer, sua compressão em código permitindo tanto sua difusão em rede como sua manipulação irrestrita, possibilitando a irrupção de linguagens novas, totalmente distintas da lógica original do cinema como pensamento[9].
A vídeo-instalação, portanto, acontece no desdobramento entre essas mídias lógicas e suas decorrentes estéticas e linguagens. Imagens produzidas digitalmente, vertidas em códigos por meio de dispositivos computacionais, manipuladas por softwares − que nada mais são do que emuladores de outros ambientes técnicos, como lembra Couchot[10] −, são então projetadas (ou mostradas em monitores) no espaço, ativando determinadas modulações sensoriais, dando luz a um ambiente estético.
A projeção, é bom lembrar, tem direta analogia, por herança aliás, da pintura: ela supõe uma tela, uma moldura sobre a qual se projetam as imagens − com o uso das tintas, no caso da pintura; ou diretamente com a luz, no caso da projeção. Se a pintura já era em sua época pensada como uma janela, a projeção é a consumação da janela por excelência, já que não apenas traz o movimento que simula a realidade para a imagem como enfim descarta a moldura. Pois a moldura, tantas vezes discreta sobretudo nas pinturas modernas, nunca foi mero detalhe. A moldura limita, põe bordas, circunscreve a imagem ao seu lugar próprio, diferente e isolado do real, lugar-espelho mas ainda assim lugar de representação. A moldura separa a tela e a pintura do espaço real, presencial, cotidiano, que a rodeia, tal como a janela separa o espaço interno do externo numa edificação. Por meio da projeção, o cinema abre mão da moldura ao mesmo tempo em que instaura o ciclo das imagens em movimento, imagens que não obstante ganham estatuto híbrido, entre o real e o virtual, de todos modos um status flutuante e indeterminado, ambíguo para os afetos e percepções.
Ou seja, o próprio cinema antecipou, por meio da projeção e da imagem em movimento, um fenômeno que vai se consolidar com as imagens digitais: a dissolução da barreira − ou estatuto − entre real e virtual, entre real e simulado. Simulado e virtual surgem como modos do real. Deste modo, as imagens digitais são por definição realidades elas mesmas, realidades que suportam, comportam ou compõe com outras realidades, mediando contextos, eventos, temporalidades. As implicações (sociais) desse fenômeno são melhor problematizadas por Edmond Couchot:
Reafirmo que as novas imagens são um sintoma, entre muitos, de um determinado estado de cultura em que a prevalência da imagem, resultado de sua importância cognitiva, em especial na arte e na ciência, revela uma tradição problemática marcante em nossa civilização desde o Renascimento. Não é o mundo real mas a maneira de inventar o mundo possível que aqui interessa, e não apenas uma perspectiva estética, mas também ética e política. Se esse mundo real reduziu-se à realidade virtual produzida por gadgets tecnológicos, eis um fenômeno societário preocupante, que abole o tempo prenhe de sentido e o substitui por uma novidade sem espessura nem consistência, um virtual presente banalizado.[11]
As imagens digitais se tornam deste modo a sagração daquilo que o cinema pressupunha para seu êxito: se a sala escura imersiva, com o auxílio da projeção sem moldura, favorecia às imagens serem percebidas como verossímeis, reais de fato. As imagens digitais, circulando de forma onipresente por todos os meios, dispositivos e redes, atravessam as realidades em cortes atemporais, supra-reais, autônomas aos acontecimentos e no entanto nunca indiferentes aos discursos da técnica[12].
Neste ponto é válido voltar a Flüsser. De que maneiras se pode lidar com as condições mistas da vídeo-instalação, com todos os textos e subtextos de seus dispositivos, de suas caixas pretas, sem se deixar levas ingenuamente pela tecnologia? A questão, é claro, é muito mais ampla e complexa, como já vimos em Couchot, não podendo jamais ser resumida a um problema de alternativas “a” ou “b”. O próprio Flüsser não defendia isso, pois para ele o atravessamento dos aparelhos já era parte − inelutável − do ambiente, e do ambiente estético em particular. Caberia portanto ao artista − homo ludens no lugar de homo faber − o esforço pela tomada de conhecimento dos aparatos e de suas lógicas particulares, para então inventar contra os dispositivos, não no sentido de destruí-los, mas de trair suas programações internas para multiplicar possibilidades, em outras palavras, usá-los como meios de liberdade e criação.
Tal perspectiva, evidentemente, também guarda limitações. O entusiasmo sem dúvida positivo e construtivo de Flüsse que, como já salientei, faz par com os momentos mais otimistas de Benjamin, é questionável na medida em que toda liberdade constituída a partir do aparato é antes de tudo uma liberdade condicionada pelo próprio aparato. Trata-se portanto de conceber liberdades inventivas apenas relativas no interior e através do funcionamento dos aparatos, espaço diminuto porém significativo se considerado o regime de confinamento de discursos, textos e imagens a que os aparatos em seu uso automático submetem o ambiente social.
Tal reserva de liberdade pode se tornar tanto menos relevante se considerarmos que, independente das imagens, dos jogos de imagens e dos modos como estes são apresentados no espaço instalativo, as relações entre proposição e percepção permanecem basicamente inalteradas do ponto de vista cognitivo. Quer dizer, ainda que as sensibilidades se modifiquem de ambiente tecnológico para ambiente tecnológico, como identificou Benjamin à respeito da passagem da fotografia para o cinema[13], não chega a haver mudança na mecânica essencial, no modo como os corpos recebem os estímulos de imagem e som − o que muda é a (des)ordem do processamento (pensamento) e a sua velocidade.
Esse aspecto nos conduz para as questões que respeitam à própria montagem das imagens, sua organização segundo certos critérios, lógicas ou ordens, o que no cinema tradicional se convencionou chamar de montagem ou narrativa. Quer dizer, a tomada de consciência que dá autonomia ao sujeito da criação não pode se restringir ao conhecimento dos aparatos tecnológicos, mas também às linguagens e estéticas que eles veiculam em geral na condição de suportes.
Narrativas e fluxos
A narrativa, como se sabe, é a herança “textual” ou “literária” do cinema, que na concepção do filme assume pelo menos três momentos: o roteiro (literário) propriamente dito, a dramaturgia da cena (e do ator) e a montagem. Não por acaso, os cineastas e artistas que desejavam “chacoalhar” o aparato cinematográfico para ver como era e então dele tirar imagens novas invariavelmente se debruçaram sobre um ou mais desses aspectos. A lógica do filme podia ser subvertida já desde o roteiro, como o fizeram Georges Meliés e seus sucessores na tendência poética, como Jean Cocteau, se bem que em ambos, Meliés e Cocteau, o que vemos é a ênfase na cena, portanto na dramaturgia, que como no teatro por hábito afeta diretamente o roteiro e, indiretamente e por consequência natural, a montagem.
A outra entrada subversiva é naturalmente a montagem, que articula as relações entre literatura (roteiro) e dramaturgia (cena, ator) no pensamento da projeção. De modo que, no âmbito particular do cinema, narrar significa articular sons-imagens através dessas três bases, todas elas de alguma maneira, e em suas raízes, literárias. Pois é na Poética que Aristóteles postula pela primeira vez a analogia entre representação e narrativa, cujas semelhanças não são nada casuais. A narrativa é o modo de semelhança do texto com a realidade e, para Aristóteles, na ausência de imagens (da pintura, da escultura ou do teatro épico), é a ação que sustenta e articula a narrativa, dando-lhe verossimilhança − com o real, portanto representando esse real[14].
As semelhanças com algumas colocações de Deleuze sobre a imagem-movimento tampouco são casuais. Tanto para Aristóteles como para Deleuze, é no “movimento” que a imagem se configura de forma significativa − “como” movimento. Para Aristóteles esse movimento, no texto, responde pelo verbo de ação, do que decorre que tudo num roteiro remete a um ato, a um acontecimento desencadeado por um ou mais atos, atos que engendram atos, ações que desencadeiam novas ações, causas e consequências representam na ficção o que perfaz a realidade, o movimento[15].
Deleuze fala da imagem cinematográfica como imagem ela mesma movimento, imagem-movimento, pois que se torna imagem antes de tudo por ser movimento. É claro que Deleuze pensa num contexto mais amplo, no cenário mais complexo do cinema e das imagens contemporâneas. No entanto, ambos, Aristóteles e Deleuze, coincidem num outro aspecto: a narrativa se desenvolve sempre de um ponto para outro, num ato ou deslocamento, em outras palavras, numa ação ou movimento, de “a” para “b”. Tal movimento (narrativo) é antes um movimento de soma (fluxo) ou negação (dialética) em que se processa uma transformação: ao deslocar-se de “a” para “b”, tanto “a” como “b” mudam, dando origem a “c”, e essa é basicamente a raíz estrutural de qualquer movimento a que se possa chamar de narrativo.
No cinema contemporâneo, seguem-se em geral duas vertentes que podem sem relacionadas à histórica dicotomia entre figurativo e abstrato nas artes: o cinema narrativo e o cinema de fluxo[16]. O primeiro é evidentemente representado pelo cinema industrial mas também por todas as suas variantes artísticas de tendência figurativa. Fundamentam-se na figuração, na busca pela semelhança com o real ou com as realidades percebidas, é um cinema de representação, literal mesmo em sua essência narrativa.
O segundo caso aplica-se a todo tipo de iniciativa poética não-narrativa, de caráter muitas vezes experimental, desde Meliés mas com efeito a partir dos anos 60, com a eclosão dos Cinemas Novos na França e em várias partes do mundo. Neste caso, trata-se do que se convencionou chamar de cinema de fluxo, pois que antes de tudo compreende, e assim se sustenta, a partir da noção de que toda narrativa figurativa está incorporada pelos dispositivos e pelo ambiente cultural contemporâneo. Desta forma, propõe ainda dentro do dispositivo cinematográfico, da captação à projeção, uma subversão das suas três bases fundamentais (roteiro, dramaturgia e montagem) como modo de proposição de uma linguagem cujo “fluxo” de imagens dialogue, por semelhança de ritmos, intensidades e variações − e não por figuração, verossimilhança ou concatenação de nexos e ações − com o ambiente contemporâneo.
O maior exemplar dessa espécie, e que serve para Deleuze pensar o cinema tanto quanto lhe serviu Bacon para pensar a pintura, é Jean-Luc Godard. Apesar de ser ainda cinema-montagem, projetado na sala escura, trata-se de fluxo desde a sua concepção. Godard não abole o roteiro mas não necessariamente principia com a palavra escrita. Faz anotações casuais, recorta elementos da realidade, documenta, realiza ensaios, produz sequências ficcionais cujos resultados levam a pesquisas em arquivos, surgem imagens históricas que suscitam teorias, filosofia e literatura entram como citação, tudo isso paulatina e experimentalmente montado de modo poético, em choque de imagens e sentidos. Como se espanta Deleuze em “A imagem-tempo”:
O corte torna-se interstício, é irracional e não faz parte de nenhum dos dois conjuntos (a montagem narrativa de Griffith ou a montagem dialética de Eisenstein), sendo que um não tem fim, nem o outro começo: o falso raccord é um corte irracional. Assim em Godard a interação entre duas imagens engendra ou traça uma fronteira que não pertence a uma nem a outra. [17]
Se pode dizer, portanto, como de fato o disse Deleuze, que o cinema de Godard é a própria realização, em filme, do efeito almejado por Eisenstein com sua montagem intelectual, de choque. O que era portanto um efeito a ser logrado no espectador, aqui em Godard é o próprio filme a ser experienciado, tal a conexão de fluxo e ritmo entre as camadas profundas do pensamento e o filme tal como se apresenta.
As semelhanças com o vídeo, com os experimentos da vídeo-arte, e com a vídeo-instalação propriamente dita, vão além das simples aparências e modos de apresentação. Não só os dispositivos são compartilhados − Godard usa câmeras de vídeo, câmeras portáteis, caseiras, celulares − como os ambientes da experiência que origina os registros também são comuns. Tanto o vídeo, a vídeo-instalação e o cinema de fluxo visam, em geral e por um lado, um afastamento do figurativo e do representacional, e por outro uma aproximação com o sensorial, experiencial, fragmentário e híbrido.
Trata-se em certa medida de opôr superfície e profundidade ou ao menos fazer com que a todo instante a profundidade ecloda sobre as aparências, que a imobilidade se instaure sob as ações, que o espaço e o tempo reverberem sobre os acontecimentos. É fato que as noções de narrativa transitam e se transformam, se metamorfoseiam e se reinstalam mesmo entre linguagem e dispositivo, entre conteúdo e tecnologia, o que torna a narrativa em alguma medida inexaurível. A única exceção seria de fato a total abstração da e na imagem-movimento, mas esta não é a proposta desta pesquisa.
O cinema de fluxo, tanto quanto a vídeo-instalação, gravitam entre fluxos que se fazem também entre nós (fragmentos) de narrativas. De ponto em ponto do fluxo, entre ritmos, encontramos pedaços de ações, movimentos não começados ou não terminados, acontecimentos parciais, razões que se exaurem em movimentos intersticiais (irracionais, nas palavras de Deleuze) que o próprio fluxo vai (des)continuando através do movimento da montagem. Montagem, claro, no caso do cinema, e apresentação (projeção) no caso da vídeo-instalação.
A língua dos aparatos
Há dois modos como os aparelhos são empregados no contexto da arte. Um deles é pela ocultação dos mesmos, como é o caso do cinema, em que a sala escura e a grande tela competem para apenas imagens e sons, juntas, produzam o efeito de realidade, atendendo tal recurso pelo nome de imersão. O outro, obviamente, é abordar a presença da tecnologia em seu atravessamento com a obra, quer seja incorporando os aparelhos e seus dispositivos como parte física da obra instalada, quer seja trazendo as questões da tecnologia como elemento metalinguístico no interior das imagens.
Godard, de novo, é o exemplo mais imediato sobre o artista que incorpora a tecnologia como parte da estética e da linguagem, fazendo notar sua presença, seus efeitos e contradições. No caso da vídeo-instalação, além da tecnologia estar implicada (como problema) nas próprias imagens, é também possível torná-la visível no ambiente instalativo, tornando aparentes seus dispositivos, mecanismos e conexões. O projetor, por exemplo, é em essência uma fonte de luz, síntese daquilo que constitui a imagem, e sobretudo a imagem técnica contemporânea. A presença aparente do projetor e a implicação do mecanismo físico, ainda que sutil, entre a fonte da imagem e o foco de luz que se estende em projeção até a tela , formando o retângulo que produz a imagem, é sem dúvida um modo de abordar a tecnologia como parte da discussão em obra.
No entanto, é claro que apenas isso não é suficiente, ou ao menos não para uma abordagem mais aprofundada. De modo que é preciso igualmente que as próprias imagens projetadas estejam impregnadas pelos elementos que discutem a tecnologia, imaterialidade, código, tempo, fluidez, hibridação. Além disso, é importante pensar o contraste como um dos elementos que estabelecem choque e espelhamento no interior mesmo de um problema, sendo essa contraparte necessária na discussão. De modo que a própria imersão deve acontecer como um momento, uma passagem da instalação em que os aparatos sejam ocultados, obscurecidos, para que a experiência (ou tentativa) da imersão possa atravessar o público, que logo será outra vez despertado para a realidade tecnológica que envolve a sua experiência.
O que tal estratégia revela, no contexto da pesquisa, é o foco cognitivo-perceptivo da experiência pretendida na instalação. Trata-se de fato de produzir passagens de estados, de sensações, de tempo e de atmosferas, de sentidos e ressonâncias espaciais, sucessões de momentos que são diferentes recortes da relação entre consciência, imaginação, afetos e percepções. Em última análise, a paisagem de que trata a pesquisa é uma paisagem interna, mental, das telas de projeção mentais então materializadas no ambiente instalativo, em que momentos de maior ou menor consciência se alternam com momentos de maior ou menor densidade ilusionista, explorando diferentes canais sensoriais a cada vez, o som, as imagens, as sensações visuais, as percepções temporais, narrativas, associativas, racionais.
Para que isso aconteça, creio, para que as passagens sejam assim percebidas em seus cortes e mudanças, é necessário lidar com o tempo numa dimensão dilatada. Ou seja, ao contrário da interposição de ritmos rápidos, que é o recurso mais óbvio quando se pensa numa aproximação com os próprios ritmos do mundo e da vida contemporânea, a proposta é jogar com ritmos desacelerados, contemplativos e que certamente ativam nos sujeitos − ávidos por ações, associações, tensões, impulsos − possíveis reações de crítica, desprezo e resistência. De qualquer forma, espera-se que o próprio ritmo lento e progressivo da instalação tenha a capacidade de envolver mesmo sujeitos mais agitados nos desdobramentos de estados da instalação. A dilatação do tempo é um recurso portanto de envolvimento, sutil e não agressivo, que dá ao sujeito o pleno direito de permanecer ou não no ambiente da obra, de relacionar-se ou não com o tempo e com o espaço que se lhe apresentam, sem jogos, ganchos ou seduções. A idéia é que seja sua opção permanecer, e usar dos recursos de que dispõe, para relacionar-se com as diversas atmosferas, sensações e passagens que a obra propõe.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, igualmente não se pretende trabalhar com imagens ou narrativas que sejam elas próprias profusas, carregadas. Além do tempo dessas imagens ser também mais lento e dilatado, a abordagem como um todo terá um tratamento minimalista, especialmente no que se refere ao preenchimento do espaço. Afinal, é importante que haja espaço, de fato, entre as imagens, entre os aparatos. De novo, é via contraste, no caso imagem e não-imagem, espaço vago e espaço preenchido (com luz), que se pode efetivamente − e mesmo que apenas num nível inconsciente − conceber a existência tanto de um quanto de outro. Também a espacialidade entre os objetos é uma questão de tempo, de distância e deslocamento entre eventos eles próprios operando em diferenças temporais. De modo que o espaço, como conjunto da obra sucedendo, em devir, é também objeto de contemplação, um dos graus mais amplos que ao menos potencialmente a mente e a própria consciência podem alcançar.
Em suma, uma economia de meios e imagens parece necessária, qual um sacrifício, para que as mesmas possam ser notadas numa dimensão e numa profundidade que nunca depende das imagens que se apresentam mas do estado receptivo daqueles que se aproximam. Tal receptividade, é claro, pode ser sensibilizada pela própria postura da obra, a forma como o tempo de pronto conduz mansamente a atmosfera da instalação, a disposição do espaço em seu jogo de amplitude e preenchimento.
Em torno de tudo isso, o que surge é a paisagem, paisagem que decai com a luz do dia e que renasce com o retorno da luz, ao amanhecer, paisagem que reduzida a seus elementos mais essenciais se torna paisagem de todo e qualquer lugar, paisagem interna, de ser. A paisagem portanto é outro meio, uma figuração que se dissolve entre linguagem, estética e aparatos, transitando através dos estados e ânimos da consciência e da imaginação, não só disparando impulsos, fragmentos, memórias mas acolhendo em sua temporalidade e sucessão aquilo que também vem e rebate entre os sujeitos.
Afinal, sabemos, não há paisagem alguma lá fora, ou não apenas isso. Não há imagem da qual não participemos com todos os nossos sentidos, afetos e percepções.
Referências
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[1] O historiador marxista Ernst Fischer traz uma abordagem geral da evolução dos instrumentos no contexto da arte, remontando à pré-história do homem e discutindo a evolução dos impulsos que levam o homem a produzir arte.
[2] Flüsser, 13.
[3] Greenberg, p. 101.
[4] Flüsser, p. 13.
[5] Benjamin, p. 91.
[6] Flüsser, p. 15.
[7] Idem, p. 15.
[8] Deleuze, p. 14-16.
[9] Tomo de Deleuze (“A imagem-tempo”, 2005) a expressão “cinema como pensamento”, pois é deste modo – como pensamento – que o autor analisa o cinema.
[10] Couchot, p. 37.
[11] Couchot, p. 54
[12] Idem, p. 37.
[13] Benjamin, p. 91.
[14] Aristóteles, p. 54.
[15] Idem, p. 51-54.
[16] Oliveira Jr., p. 72.
[17] Deleuze, p. 218.