A linguagem do rio
Não é a primeira vez que escrevo sobre um cineasta que realiza um grande filme na improvável casa dos 80 anos. E que prazer é fazer isso! Em especial, se o nível da obra ultrapassa facilmente o que de melhor se vem fazendo entre as gerações de hoje – sem que isso tire os méritos de ninguém. Foi o caso de Michael Haneke e de seu “Amor” (2012), é de novo o caso de Jean-Luc Godard e o recente “Adeus à linguagem” (2014). Com a mesma vitalidade que lhe escancarou a carreira com “Acossado” (1959), o cineasta francês oferece-nos um olhar lúcido e poético sobre o tempo em que vivemos, tendo como motivo os altos e baixos na relação de um casal. Seguindo sua própria sina de um cinema ao mesmo tempo político, lírico, inventivo e intelectual, Godard se supera ao desdobrar de vez aquilo que sempre foi seu principal ponto de partida e de chegada, enfim uma obsessão: a linguagem.
“Adeus à linguagem” é feito de tudo aquilo que faz a realidade, essa convulsão sensorial que nunca se fixa, não permite certezas e nos faz sujeitos instáveis em permanente cachoeira de abalos, arroubos, vazios e novas precipitações. “A experiência interior está proibida pela sociedade em geral, e pelo espetáculo em particular”, vem logo com Debord a sentença e então o arremate: “o que eles chamam de imagens tornou-se o assassinato do presente.” Godard está comprometido, de olhos abertos para si e para o mundo, a deixar que tudo lhe atravesse os poros, incorporando o fluxo na forma do cinema. É assim que “Adeus à linguagem” se faz produto da experiência de ter com o mundo, ele é parte deste mundo, testemunha e ator, é o embate a sua fonte, a sua potência, é o que o difere radicalmente de qualquer ilustração – ou espetáculo. Godard colhe o cotidiano com olhar apaixonado, jamais o reproduz, não tenta emulá-lo e nem impõe ao mundo a sua ordem intelectual. É que para isso é preciso estar vivo e presente, é preciso amar e saber-se inacabado, é preciso pensar inquietamente pelas próprias brechas do pensamento, como escreveu Deleuze, é preciso deixar que o mundo nos atravesse sem piedade em todas as dilacerações do sentido e da forma. Mas ainda não é só isso: é preciso manter-se firme através da corredeira aguda das imagens – e dos cortes do tempo.
Não seria outra a postura de Godard desde os anos 60: manter-se consciente a despeito das ondas que teimam em sucedê-lo. Quase dispensável lembrar que estamos falando de um dos, se não o mais fundamental, cineastas da nova onda francesa, sem o qual é impossível compreender e, mais importante, desfrutar da sensibilidade do melhor cinema contemporâneo. Não cabe enumerar as contribuições técnicas, formais e teóricas produzidas em sua carreira, até porque elas seguem se revelando, como é natural entre as obras mais relevantes. Importa constatar que o mestre francês não se copia, não se repete, não se faz caricatura. Godard vai além de si, na medida em que faz conter neste filme o seu melhor, porém em viva reinvenção no embate com as questões de hoje, as suas como ser humano e autor, mas também os dilemas da estética e da cultura, tudo convergindo para a crise da linguagem como vetor das realidades.
Godard produz assim um evento-espelho que emerge de um mundo intermediário, nem exterior nem interior, matéria e imagem se alternam e se diluem a cada momento em seu atravessamento ao campo subjetivo do ser – o cinema como tentativa de olhar para si, convergindo à garganta do espectador. É um rio furioso e feito de muitas correntes, produzindo uma realidade imprecisa e fugidia, poesia de manchas n’água, como bem metaforiza a repetida sequência da barca que se aproxima do firmamento. Será a barca dessa linguagem híbrida e profusa que ainda está por se fazer e que nunca termina de chegar em seu ancoradouro? Haverá ponto de estabilidade ou de repouso? Se há alguma resposta para esta pergunta, certamente ela está tanto no título como na forma do filme. O que temos aí já não é linguagem. Nossa sorte é que, se esta obra de Godard de fato representa aquilo que essa não-linguagem pode nos dar em termos estéticos, estamos muito bem servidos.
“Adeus à linguagem” é espécie de testamento daquilo que deve permanecer apesar de tudo, de todo o excesso, como diria Sartre. O amor é sem dúvida o centro gravitacional do filme e, portanto, da própria existência segundo Godard, resistindo através de um fluxo de linguagem que se esvai sem apelo. O amor está casado com a cultura como sempre esteve no cinema francês, mas aqui o discurso se dissolve para revelar, ou tentar desfetichizar, o corpo. O amor então já não é apenas discurso e tampouco se faz idílio. O amor é corpo, nudez, banalidade, dígitos e vísceras, mas também a poética que o defende do poder, da política e das armadilhas da linguagem. O amor em Godard prefere viver precariamente, mas viver, ainda que entre vírgulas, parênteses, rios e vazios, história e imagem, memória e atualização. Curiosamente, o contra-ponto, e talvez a contra-prova do amor realizado e encarnado, e que a nós humanos não está disponível senão como ideal, é a outra sequência que atravessa o filme acompanhando as errâncias de Roxy, o cão doméstico do casal. Somente a ele, que “ama o homem mais do que a si mesmo”, é dada a experiência plena de amar. A cena em que ele rola pela neve está entre as mais belas.
Como na maioria de suas obras, aqui também Godard segue um habilidoso colador. Realiza uma colcha de retalhos que ninguém negaria ser de sua autoria, mas que se faz das contribuições de muitos, escritores, pensadores, poetas, cineastas, pintores e a própria mídia, a cultura, o homem comum, rendendo sempre os devidos tributos. O ritmo do filme se dá assim num entrecortado navegável de imagens que se tornam palavras, palavras que encerram significados evanescentes em epifanias, poesia que suspende o pensamento, cruza a metalinguagem e retorna à plástica para recair no vazio, no selvagem, passagens que irrompem música, música que amacia a aridez de certas verdades que se insinuam, mas que nunca se afirmam absolutas – nada se fixa, a paixão segue. É dessa forma que Godard parece preferir dar adeus à linguagem, não a negando, mas brincando de esconde, deixando-se perseguir para surpreendê-la com humor, afeto ou fina ironia. A todo instante quebrando formações e continuidades, suspende o fluxo do filme numa experiência viva, consciente e criativa, tudo ao mesmo tempo.
Do ponto de vista técnico, é de novo a consciência que chama a atenção. Não há escolha que não passe pelo crivo do conceito e que não esteja implicada na linguagem que o filme problematiza. É o caso do uso de múltiplas câmeras, em formatos digitais variados, do celular ao HD, culminando na terceira dimensão. Nada é gratuito ou casual, tudo está a serviço do sentido ou da poesia. O uso do 3D é o melhor exemplo, na medida em que, a contrariar a expectativa, nos confunde com a concomitância das camadas que criam a ilusão, apresentando-nos a causa e o efeito sobrepostos, no que opera uma autêntica agressão ao olhar pela consciência abrupta do mecanismo. É como sentir a dor da ação da tecnologia no próprio cristalino – a navalha de Buñuel e Dali traindo o espetáculo. No outro extremo, pendendo para a estetização formalista no mais exuberante dos graus, Godard deita e rola com os efeitos que o colorismo digital permite aos realizadores de hoje. Perseguindo a sofisticada paleta da pintura impressionista, com Monet à proa – “devemos pintar o que não vemos” –, brinca com tomadas da natureza em matizes saturados, em livre flerte com as tendências da glitch art. De modo semelhante, incorpora toda sorte de acidentes e ruídos digitais e se deixa levar com gosto em momentos de pura abstração.
Trata-se tranquilamente de um dos filmes mais plásticos de Godard, no sentido de que a estética já é inteira uma política, o que torna o discurso supérfluo e indigno de qualquer confiança, como quase sempre é o caso. De qualquer forma, a guerra e o videotape seguem a fazer pontes de associações instáveis com as cenas mais cotidianas, produzindo no interior do filme os mesmos abalos e reviravoltas que costumam fazer sem aviso em plena luz do dia. De modo que se torna um claro signo de otimismo e força essa prevalência da beleza sobre a impostura dos discursos, o que outrora foi o calcanhar de Aquiles do mesmo Godard. Assim como a dureza da linguagem usada em proveito próprio – e político – acaba por esmigalhar a fluidez da estética, na exuberância de suas potencialidades a estética aqui reage e triunfa, esmigalhando poeticamente a linguagem. Sua aliança secreta com quaisquer verdades insondáveis que habitam o espírito e a terra a torna invencível mesmo que o poder sempre pareça sobrepujar. É com a fluidez do rio que Godard prefere identificar a estética: “ela (a água) está tentando falar comigo”, pensa o cachorro Roxy à beira do rio, “como sempre veio tentando falar com as pessoas através dos tempos”.
Não é todo dia que se realizam filmes como este, testemunhos de uma época e que não deixam dúvidas sobre sua importância. Não é todo dia que um filme deste tipo é realizado por um cineasta de 83 anos, idade em que a maioria dos autores, com toda a justiça, já encerrou a carreira. Sorte que algumas mentes não se cansam da lucidez, como Haneke e Godard, em tempo de contribuírem ainda uma vez para a linguagem – nem que seja para constatar seu fim. O que prova que maturidade e juventude são os dois lados de uma mesma moeda e que preterir a um ou a outro ao longo da vida é um bom passo para o fracasso. Godard não faria um filme desses se não soubesse disso e de algo mais, que nós ainda estamos por compreender. Quem sabe nos possa dizer o rio, se o escutarmos com mais atenção.
* Artigo originalmente publicado na revista cultural Mínimo Múltiplo, em agosto de 2015.