Statement

“Meu trabalho vem mudando muito ao longo do tempo, num movimento constante que se desfaz dos excessos para concentrar-se mais e mais no que é essencial para mim. O cinema encontrou o vídeo na investigação dos dispositivos e tecnologias. A colagem se tornou um procedimento na composição de objetos, assemblagens e espaços de instalação, sendo finalmente absorvida pela fotografia. A pintura foi invadida por toda sorte de materiais e acabou por se desfigurar, descartando qualquer representação para se tornar líquida e informe.

De tudo o que ficou pelo caminho, certos elementos se mantiveram estáveis. Eles apontam para uma síntese dos interesses e questões que me motivam como artista. Esses interesses são inseparáveis do processo, passando pela escolha dos suportes e materiais, dos ambientes, meios e motivos utilizados para captação, de toda técnica e tecnologia que envolve a concepção das obras. Em todo caso, trata-se de uma luta contra a própria tendência racional e projetual, em cuja lógica procuro instalar a iminência do acaso e do descontrole, como construir pontes que eu mesmo possa implodir antes de prontas.

Além disso, a repetição dos gestos, a colisão entre os materiais e a passagem constante entre suportes se tornam procedimentos disparadores desses acidentes ou eventos poéticos, como costumo chamar. Eles levam processos construtivos mais ou menos previsíveis à beira de colapsos. Com isso as obras se adensam em tempos e espaços abstratos, onde habitam questões metafísicas e existenciais, entre as quais os problemas da linguagem e da percepção, do dentro e do fora, de como o mundo visível nos afeta e é afetado por nós.

Nesse sentido, e seja qual for o suporte, o que proponho é um olhar sempre reticente diante do progresso material e tecnológico. Interrogação que atenta para a expressão sensível em meio ao crescente desconforto existencial que experimentamos na contrapartida das ilusões de redenção e liberdade que esse mesmo progresso técnico promete. Para isso, a obra concentra a sua energia nos aspectos humanos mutáveis, as emoções, as sensações, os dados imediatos da experiência, as expressões de embate e perplexidade existencial em meio à conjunção conflitiva dos mundos técnico e natural.

Esses problemas se objetivam na fatura plástica das obras. Sutil, fluída, densa, maleável ou rígida, nossa experiência é profundamente condicionada pelos estados da matéria . Trabalhados ora em composições harmônicas e racionais, ora em choque e conflito frontais, os elementos materiais das obras, incluindo os suportes, perfazem espécie de topografia das sensações humanas face às condições externas. Então a linguagem nunca chega a conformar as obras, sendo ao contrário desdobrada em seus processos como uma avalanche a reconfigurar a face da montanha.  

Tal movimento é responsável pela topografia acidentada da obra, que bloqueia nossa cômoda tendência em repousarmos na beleza, frustrando o ilusionismo o tempo todo. A consciência começa no próprio trabalho. Pois se apresenta tanto em sua dimensão comum, como objeto ou manufatura banal, vendável, decorativa ou descartável, quanto em sua dimensão mais transcendente, catalisadora de conexões e símbolos. Mas entre essas duas dimensões ainda existe uma terceira, que é o próprio processo. Eu diria que no ato de fazer, que é deliberadamente deixado inscrito nas obras, está para mim seu significado mais poderoso. Porque quando o público toca essa dimensão sutil, é quando nos encontramos no mesmo espaço e tempo. Para um artista, essa é sem dúvida a maior recompensa.

Muriel Paraboni | Artista