A Sombra e seus contrários (2017-18)
Textos selecionados da produção 2017-18 para ´A sombra e seus contrários´, obra em edição.
limiares
atravessar a avenida
de múltiplas pistas
na fronteira
com todos os países
inimigos
consolidar a paz
ou acirrar a guerra
olhar nos olhos dos diabos
padecer e triunfar
pedir perdão
dar um passo
o maior de todos
até aqui
e amanhã mais um
ainda mais arriscado
sentir o vento
cortar a garganta
do precipício
viver o alívio
de deixar morrer
e voltar e voltar e voltar
pelos remoinhos da ilusão
até limpar o último escarr
até o coração soltar
fogos de artifício pelas veias
flores no saguão
uma flor sem nome
vermelho sangue
rodeada de copas verdes
no vão do décimo sétimo andar
as luzes se entrelaçam
numa névoa tardia
nem cortina nem nuvem
fina como deleite
cálida como a estação
ela adentra o meu jardim
molha o piso de reflexos
lembrando que o céu
nem sempre está em cima
o espaço abre qual silêncio
austero e estático
sem impôr suas sensações
as coisas são como são
vejo tempo entre os objetos
assim vai caindo o dia
quase sem se pronunciar
tem um vento solto lá fora
tem um zunido difuso
de muitas cidades amontoadas
nem tudo está perdido
como nem tudo
chegará em nossas mãos
mas não se lamente
o contentamento nem sempre
faz a sorte
mas a sorte nem sempre
está com a razão
buquê
eu e o meu silêncio
nos encontramos
nesta tarde
e não dissemos nada
um ao outro
até a hora do chá
quando você voltou
com o buquê
de rosas mortas.
inverno
do alto da montanha mal te vejo quase um ponto
azul-escuro como um risco diminuto
sobre o mar amanhecido.
a neve se insinua pelos traços sem
que se perceba devagar
espalha mansa sobre nós seus finos dentes brancos.
o gelo engrossa a linha tênue mas
te vejo imóvel como esfinge
na passagem escarpada pela qual devias retornar
já não posso te escutar em meio ao vento
que consigo traz augúrios
das cidades já deixadas para trás no vão do esquecimento.
Margem
Ao caminhar lento
pela avenida-rio, consciente contra
o fluxo das eletricidades,
vejo letras vibrantes
no espaço interno
das palavras – onde frases
ondulam reflexos
suspensos pelas pausas
e pontuações,
pontes pênseis ao pensar
que nunca
acaba.
Apressar o tempo,
como saltar as ondas,
como assaltar
as horas
e cair
dos próprios sapatos
no contra-fluxo do turbilhão,
todas as ideias
por saber, por certo
germinam
às margens
do sentido.