Vertigens do sublime: a experiência da paisagem do minimalismo ao ritual
Em certo momento a perfeição − este excesso dos excessos! − atinge uma irreprimível exaustão. A obsessão tão clássica pela harmonia e pala composição já não podem reinventar mais nada, o que lhes condena ao decadentismo, ainda que sutil e sempre borrifado pelo perfume-verniz da elegância dos salões acadêmicos. É nesta fronteira entre o rigor que constrói e o rigor que sufoca que toda a pintura de uma época conhece o pânico de ver-se reduzida a mera decoração. O romantismo, que então não tinha nome nem forma reconhecível, já está se manifestando por toda parte, e através das variadas linguagens artísticas da época − em particular a poesia, a literatura e a música − na forma de uma difusa inquietação.
Tal inquietação, ainda que eventual e manifestamente dirigida a certas instâncias da sociedade e da cultura, está relacionada com algo mais essencial: a razão. O movimento romântico que começa a tomar fôlego é antes uma reação − de envergadura vanguardista, vale dizer − ao fenômeno da racionalização generalizada que perfaz a sociedade e a cultura modernas que neste ponto estão se consolidando. Para isso, nada mais natural e subversivo do que o retorno, retorno abrupto e fundo, abissal se possível, nos emaranhados da emoção e do sentimento, fazendo transbordar sobre as aparências da harmonia todas as confusões e intensidades que tanto aterrorizam a razão. O meio pelo qual esses afetos loucos vão atingir em cheio as artes visuais, e a pintura em particular, é sobretudo a cor. Com o tempo, porém, tudo o mais acabará emaranhado em sua torrente, o desenho e o tema inclusive.
A solidão contemplativa, inspirada pela poesia, é uma das pré-condições mais corriqueiras entre os pintores românticos. Gaspar David Friedrich vai chegar ao extremo de preferir pintar monges habitando bucólicas paisagens, embrenhadas em sugestivos claros e escuros, quando não opta de simples pela própria paisagem, completamente desabitada, diluída no movimento caótico das luzes e de formas excessivamente fluídas para os padrões de composição da época. Há que se observar os contrastes para com as paisagens clássicas: todos os volumes tinham seus lugares precisos e a fluidez das formas − da terra, da vegetação, das nuvens, das luzes − respondia sempre a uma certa boa medida, sensata talvez, de comportamento, como comportado e moderado era o arranjo das luzes, evitando por tudo os extremos. A pintura romântica foi aos poucos rompendo com toda essa prudência, arriscando em traços mais manuais e expressivos e fundindo-os às luzes que então rasgavam o horizonte.
Seria preciso sem dúvida voltar no tempo para comprovar com os próprios olhos e sentidos o que deve ter se dado no âmbito das exposições, desde que o romantismo passou a inundar a imaginação dos pintores. O que terá sido dos salões, dados aos animosos tratos sociais e aos comentários tão espirituosos quanto racionais à respeito da superfície ululante da maioria das obras? Como racionalizar o novo que se expressa e que se expressa assim pelas bordas, como erva daninha ou inundação, através da provocação pelos porões dos humores, pegando o bom senso desprevenido? Pois é bem possível que os efeitos da paisagem romântica tenham causado perplexidade na mesma medida em que devolviam à visualidade a potência perdida de seus afetos mais convulsos.
Mas o ponto aqui é ainda outro e um tanto mais sutil: o que a pintura romântica exigia no contexto expositivo não podia ter nome, já que atendia pela textura esquiva das emoções. Sua presença produzia um ruído na linguagem e na razão, sugerindo tudo o que pode ser considerado anti-social para a contemplação: silêncio, recolhimento, solidão. A solidão da paisagem, a finitude das luzes, a quase insignificância das criaturas à deriva como sombras entre os volumes, fazendo hesitar qualquer noção de acolhida e devolvendo à paisagem “cultural” a sua contraparte, ou sombra perdida, varrida mesmo deste mundo acovardado: a natureza inquieta, crua, insensível ao lápis, que não se entrega e não se dá a entender, reduzir ou controlar. E então alguma coisa escapa à geometria e à composição, algo que nunca está apenas lá, na tela pintada, mas que ressoa outra vez sem nome no próprio corpo do contemplador.
O resultado disso, por óbvio, só poderia ser Kant.
Do caos ao sublime
Para Marc Jimenez, apenas Kant, depois de séculos de teses, debates e especulações insatisfatórias acerca da natureza da experiência estética, foi capaz de organizar e sistematizar uma aproximação consistente para o juízo de gosto[1]. É sabido que o próprio filósofo muito resistiu à empreitada na medida em que duvidava da possibilidade de objetivar a questão. Somente o fez quando encontrou a fórmula adequada, que acabou por agradar e acalmar as almas mais inquietas em torno do tema.
O idealismo do sistema kantiano é primo-irmão do romantismo. E mesmo que sua organização seja absolutamente precisa, exaustiva em todos os detalhes, de natureza asséptica, geométrica e composicional nos moldes clássicos da academia, é certo que ao menos na “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” o filósofo alemão não escapa da influência da arte de sua época. Mesmo que, ainda conforme Jimenez, seja notável a referência e o retorno recorrente aos temas da natureza domesticada, a paisagem em seu estado mais basicamente jardinesco, aquele da tulipa bem comportada e do pássaro posado sobre um galho, é evidente a correspondência de espíritos que se dá com as manifestações românticas da época[2].
Não fosse isso e possivelmente o conceito de sublime não existiria, ou não existiria nos termos em que o conhecemos. Kant vê o sublime em certos “momentos” da natureza, como quando nos vemos colocados diante de um abismo ou de uma paisagem impactante e nos sentimos tomados por uma espécie de diminuição ou apequenamento. É deste modo que o sublime em Kant está ligado às amplitudes, às grandezas dos fenômenos, e em particular da natureza, em seus efeitos sobre o espírito humano, como muito bem pontua o historiador Mario Costa[3]. O choque da grandiosidade do mundo, disparado nestas situações, levaria então a um sentimento ambíguo, espécie de prazer estético, sem dúvida, mas que nos chega pelo impacto de nossa própria e irrisória dimensão no quadro geral das coisas reveladas.
Muito embora certos historiadores contemporâneos, como o próprio Costa, se refiram ao sublime kantiano como uma categoria exclusiva da natureza − sendo assim imprópria para a arte −, e neste caso consistindo numa operação sempre externa ao ser humano, tal posição é passível de discussão. Em primeiro lugar, o simples fato do sentimento do sublime se processar no interior do ser humano, em seu corpo, em sua psiquê, em suas vísceras, ainda que provocado pela natureza (externa), é uma evidência de que algo mais profundo os atravessa e os liga, corpo, arte e natureza. Goethe, falando à respeito do sublime em Kant, parece intuir o mesmo:
A natureza e a arte são grandes demais para visar a fins particulares. Há correlações em toda parte e as correlações são a vida. Se a natureza e a arte não visam a fins particulares, isso quer dizer que diante delas o homem é livre, e que a experiência da arte, por mais subjetiva que seja, é também uma experiência da liberdade. Isto quer dizer que essa experiência é acessível a todos e válida universalmente. [4]
Além disso, e aqui é que está o argumento principal, se estamos falando da paisagem romântica, e que tantas vezes não fez maiores esforços para ser apenas bela, de quê efeito, ou experiência, estaremos então tratando diante da arte? Não seria a pintura romântica, e a pintura de paisagens em especial, a transposição da natureza, e portanto também do sublime que a acompanha de modo convulso e inseparável, para o ambiente aculturado das artes, o coração mesmo da estética? Não será sublime esse sentimento que emudece, que pede reserva, que instaura o silêncio e desvela a solidão inescapável de cada ser individual? De novo: mesmo que apenas como ideal a ser perseguido, não pode haver dúvida de que o sublime participa também da experiência com a arte, como defendeu Goethe ainda em termos idealistas.
Um último argumento: a definição de sublime por Kant tem contornos muitíssimo semelhantes àquele da catarse proposto por Aristóteles em sua poética[5]. Vejamos, Aristóteles é claro está se referindo ao teatro, épico ou trágico, que para ele tinha o poder, ou talvez o dever, de provocar no público o sentimento complexo de uma remissão, espécie de alívio dos sofrimentos da alma pelo enfrentamento do herói aos muitos obstáculos da existência. Triunfando ou não, a catarse seria o efeito inevitável dessa travessia. Se as diferenças formais podem ser ainda muitas, o que dizer da semelhança na necessária passagem do horror à distensão no efeito da catarse em Aristóteles tanto quando do sublime em Kant?
Estaremos falando, neste caso, de uma experiência atemporal, humana de fato, pois que se faz indiferente ao tempo e às culturas. Ela repousa, ao que parece, num reconhecimento. Diante de algo cuja grandeza me redime, meu eu desaba, simplesmente sobre si mesmo, deixando entrever o alívio emocionado de algo que, ainda que incomunicável, nos parece ser inegavelmente comum: a terrível beleza da vida, talvez. Tal reconhecimento, se é válido o que sugiro aqui, não precisa necessariamente estar reduzido à natureza, se bem que é em suas grandezas que o efeito tenderá a ser tanto mais avassalador. A arte, como força da natureza no homem, também pode almejar, e mesmo alcançar, a proporção do sublime, fazendo o homem reconhecer sua diminuta persona nesta imensidão que sempre lhe escapa.
Em termos da filosofia estética, trata-se de dimensionar também o próprio conceito de arte, tão variável quanto os juízos de gosto. E se aqui se toma o sublime neste seu sentido amplo e atemporal, capaz de navegar da Grécia de Artistóteles para a Alemanha de Kant e logo para as paisagens artísticas e tecnológicas da contemporaneidade, por quê não tomar a arte numa mesma dimensão ampliada? A questão do tempo, que a propósito é a espinha dorsal desta pesquisa, pode ser o ponto de partida mais conveniente: em vez de situar a arte no espaço, conceituá-la “firmemente” no próprio tempo, na amplitude inesgotável da cachoeira do tempo, para comungar com uma expressão de Humberto Mauro (falarei mais dele oportunamente) que já é em si uma sintaxe poético-filosófica da experiência estética da era das imagens em movimento.
Pois é justo o movimento, característica visual do tempo, como demonstram Bergson e Deleuze, esse fenômeno capaz de ligar o acaso natural ao fazer artístico, em causa e em efeito. O movimento, queiramos ou não, é a única coisa cuja existência se pode afirmar com contundência. A morte, esse clichê, é antes de tudo movimento, o último visível ao menos. É de novo seguindo a visão ampliada que Deleuze traz de Bergson que podemos pensar o movimento como manifestação do próprio devir, o movimento como o devir em seu aspecto visível[6].
Afinal, é desde as primeiras e mais rudimentares manifestações artesanais-artísticas protagonizadas pelo ser humano que vamos encontrar o movimento. As pinturas rupestres, por exemplo, enquadradas na categoria da representação por sua tendência a imitar a realidade visível, de todos modos e antes de tudo representavam o movimento. Realizadas não como práticas destinadas ao deleite ou escrutínio estético, como se consolidou na arte ocidental, as pinturas rupestres no entanto se produziam no contexto dos rituais que perfaziam a vida dos grupos da época.
Deste modo, suas imagens se desdobravam como elementos ou elos simbólicos com a própria realidade a que se ligavam, a caça, o nascimento, a morte, todos articulações ou extensões do movimento[7]. A função de representar cumpria um papel ativo na ritualização das rotinas do grupo, dos ciclos e eventos da vida individual e coletiva. A inscrição da caça nas paredes das cavernas ativaria um certo poder, mágico, sagrado talvez, que já seria um ato de aproximação com a caça, quer seja solicitando permissão aos deuses, quer seja familiarizando a coragem do caçador para com a empreeitada ou enfraquecendo a caça face ao poder mágico do caçador.
Quaisquer que sejam os motivos ou funções da prática − artística − sob a luz dos rituais antigos, fato é que o desenho e a pintura representavam o máximo de aproximação com o enigma do mundo que rodeava aqueles seres. Ou seja, é em face do desconhecido, do imensamente inapreensível, daquilo que é preemente, o instinto da vida pulsando nas bordas invisíveis do mundo, o movimento inevitável, a precipitação dos ciclos de existir, inabarcáveis pela razão objetiva, aquilo cujo risco produz terror e portanto exige humildade, remissão − e que outra conotação pode ter a palavra sagrado?
Pois é diante desse sublime que, de novo, a arte se produz. Ela lhe serve, busca o seu efeito, liga como ponte a ilusão objetiva à magnitude do invisível, e por isso redime, remissão necessária ao caçador, por certo, que munido apenas de ímpeto e coragem, não estaria sensível e humilde aos perigos da espreita.
As vertigens da aura
Wener Herzog, em “A caverna dos sonhos esquecidos” (2010), documenta poeticamente a entrada na caverna de Chauvet, no sul da França, descoberta em 1994. O cineasta sugere, a partir do depoimento dos pesquisadores que acompanham a expedição, que as imagens encontradas naquelas paredes, pinturas rudimentares de animais silvestres, semelhantes a búfalos, cavalos e alces em situações diversas, trazem a evidência da perspectiva e do movimento em níveis variados, como técnica mas também como subjetividade. Ou seja, as inscrições elas próprias apresentam o esforço de representar, antes da figura, o próprio movimento: a caça, em todos os sentidos imagináveis, é puro movimento. E como todo movimento, sua natureza como o seu impulso é a desaparição, para que o espaço se desocupe e dê lugar para outra manifestação… de movimento.
O título do filme é mais do que sugestivo, aliás. A inscrição artística como sonho, o esquecimento como ironia a algo que atravessou o tempo. Algo se manifesta na presença desses sonhos esquecidos pelas paredes escuras de uma antiga caverna. Algo tão distante e estranho como inquietantemente familiar. E se o sentimento de distância é mais direto e factível de ser articulado pela linguagem − está ao nosso alcance quase imediato projetar este outro tempo, seu contexto, em outras palavras imaginá-lo com a plasticidade de nossa cultura visual −, por outro lado aquilo que nos aproxima por sua inquietante intimidade familiar, é tanto mais escorregadio e difícil, para não dizer improvável, nomear. Walter Benjamin certamente falava da história como processo cultural quando lapidou seu famoso conceito de aura:
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. [8]
A aura segundo Benjamin mais uma vez carrega elementos já bem discutidos aqui. Traz um evidente potencial para ligar e de certo modo sintetizar numa só figura alguns dos principais elementos que, ainda dispersos, vêm sendo elaborados. A proposição “por mais perto que esteja” pode ser um bom ponto de partida[9]. Afinal, trata-se de uma referência à obra de arte, ao objeto artístico de fato, existente, materializado, uma escultura, uma pintura. De modo que “por mais perto (que o objeto artístico contemplado) esteja”, aquilo que ele (também) presentifica é da ordem de uma distância no tempo. A referência ao espaço parece trazer duas conotações mais relevantes entre as muitas prováveis e possíveis: o espaço matérico da obra, obviamente, a obra em si e o lugar em que se vê exposta; mas também o espaço subjetivo, figurado na obra, que liga a presença à distância. Esse espaço subjetivo é a dimensão da aparição a que Benjamin se refere, aparição que em outras palavras é a própria imaginação em ato.
Não por acaso, o filósofo (também alemão) vai aludir como exemplo imediato à “cadeia de montanhas no horizonte” ou ao “galho, que projeta sua sombra sobre nós”, dois elementos da paisagem, mas antes da natureza, exatamente como Kant. E se este último definia o sublime, o que poderá conter ainda o conceito benjaminiano de aura no que respeita ao efeito ou experiência estética? Em outras palavras, o que é a experiência estética da aura? Benjamin não entra em detalhes, não descreve seus efeitos, mas como é próprio de seu modo dialético de pensar, ele espalha algumas pistas.
A aura é certamente uma experiência de vertigem, se é sua tônica presentificar algo distante. E aqui se desdobra a outra conotação sobre a idéia de “por mais próximo que esteja”: próximo no sentido de comum, direto, reconhecível, como os exemplos que o próprio Benjamin traz da natureza. No entanto, “por mais próximo que esteja”, uma vez instalado como objeto, obra de arte, seu efeito contém a distância que, então, se presentifica. Vertigem, o que mais? E o que mais também se pode presentificar, sendo distante, mesmo que próximo e que Benjamin não nomeia? A questão por certo extrapola, por simples evidência, o reducionismo que se tende a fazer do conceito de aura como dependente do contexto institucional, da produção artística ocidental enquanto produto de simples cultura. Ou seja, abordar o conceito de aura como a presentificação de algo cultural, que remete sempre a outro algo cultural, no caso artístico, é uma via de interpretação flagrantemente limitada, pois que exclui a sua dimensão mais profunda e subjetiva.
Na essência, o que a aura presentifica é o mesmo que a paisagem romântica presentifica que é o mesmo que a pintura rupestre presentifica: o sem nome, maior que o homem, que no entanto lhe provoca esta inquietante familiaridade que o aterroriza e o redime. A famosa interpretação de Benjamin sobre a pintura de Paul Klee, “Angelus Novus”, de 1920, emula em palavras a intensa vivacidade da vertigem que perfaz a dimensão aurática da obra[10]. O anjo da história, pensa Benjamin, avança sempre para a frente, no entanto mirando com cautela para trás, sem nunca perder a história de vista. Definição sobre o conceito de história em Benjamin que no entanto pode esclarecer ainda mais a questão da aura: manter presente, pela aparição (imaginação) aquilo que está distante, “por mais próximo que esteja”. Sobreposição…
Como a sobreposição da paisagem sobre a natureza, de que já falamos e de que trata Anne Cauquelin[11]. Ora, a distância de que fala Benjamin não está na cronologia pregressa do tempo, não é o passado lá atrás que retorna, não é essa a sua tese sobre a história. Para Benjamin, judeu e cabalista que era, a história se fazia em sobreposição, em concomitância, e o que está distante para os olhos do anjo de Klee não é o que passou e sim o que insiste em se esconder dos nossos sentidos exatamente aqui e agora. O que a aura presentifica é o choque, o terror, o tremor que antecede o alívio, a remissão, enfim o sublime.
Tudo isso, claro, para concluir que nem a magia, nem a catarse, nem o sublime e nem a presentificação de algo o que quer que seja distante pertencem à ordem estrita da cultura, de uma função cultural e social circunscritas, como tampouco pode estar confinado exclusiva e esterilmente entre os múltiplos tentáculos da linguagem objetiva. São todos conceitos objetivos, linguísticos, racionais, estéticos mesmo na acepção rigorosamente filosófica do termo, mas tal uma sombra, ou um eclipse − e todo objeto faz sombra, como todo objeto pode ser eclipsado −, o que se manifesta aqui, em potência, é o outro lado da lua, intangível, inapreensível, indomável, inominável e no entanto, paradoxalmente, presentificável e reconhecível tanto nos fenômenos naturais como nas manifestações artísticas.
O elo que liga a potencialidade deste mesmo efeito, da natureza à arte, é auto-evidente: o homem.
Minimalismo e sublimação
Do moderno ao contemporâneo, haverá pelo menos mais três estações − uma prática, as outras duas teóricas − nas quais o trem da estética precisa aportar. Sigo primeiro pela prática, pois que fala diretamente da arte, e da arte moderna em seu caminhar veloz para o contemporâneo. O minimalismo, por óbvio, é o ponto culminante da virada conceitual da estética, ápice da abstração da forma e do suporte, ruptura definitiva com o espaço justo por instaurar todo uma espacialidade nova, autônoma. Carrega consigo todas as artes anteriores, numa condensação sintética de proporções atômicas, nucleares. O conceito do objeto concreto, auto-referente, natureza outra, em si mesma, tem especial ressonância no contexto desta pesquisa.
Impossível não pensar nas considerações de Geroges Didi-Huberman relacionando o minimalismo à experiência da aura. Antes, claro, o filósofo não hesita em questionar o próprio conceito − tautológico − de objeto auto-referente. Critica, em nome de todos e do próprio minimalismo enquanto movimento, as afirmações de Frank Stella que endossam a circularidade concreta do objeto minimal[12]. Entre as mais célebres citadas por Huberman temos esta: “what you see is what you see”[13]. Ela será a porta de entrada para a tese do filósofo sobre a irredutibilidade da obra à seus aspectos estritamente objetivos. Para Huberman, a auto-referencialidade era mais que uma pretensão − ela deixava entrever os contornos idealistas das teses minimalistas, por mais que o idealismo fosse tudo o que mais negassem.
No entanto, se tal idealismo era um ponto cego, passível de desqualificação e portanto negado, sublimado pelos artistas minimalistas, não o será para Huberman, como não o será aqui. Huberman vai se referir a algo que inevitável e irreprimivelmente nos olha a partir da obra, usando como modelo de análise os grandes cubos negros de Tony Smith[14]. O peso e a extrema concretude da obra parecem produzir um efeito de aterramento radical no contemplador. Ao ativar o espaço de modo tão objetivamente austero, simples e direto, o objeto minimalista traz consigo um efeito de presentificação, de si mesmo e do espaço em primeiro lugar, mas sobretudo do corpo e do tempo. A relação seguinte que Huberman faz desse efeito de atualização radical com relação à aura em Benjamin se torna inevitável.
Todos os momentos estéticos relacionados até então, e que vêm sendo ligados pelo fio contínuo e invisível da sensação-movimento humano de arrebatamento e remissão, cabem sem maiores conflitos dentro de qualquer cubo ou objeto seriado minimalista. A abstração extrema do objeto o faz totêmico, mágico, misterioso, monolítico e ritual tanto na perspectiva das culturas pré-históricas, que tinham tais efeitos como objetivo, como de sua proposta enigmática em si mesma no contexto da arte moderna. Ele ativa o totemismo latente da arquitetura, do espaço moderno como um todo. Além disso, mas também por isso, tal objeto concreto que é apenas o que se vê e nada mais traz para o centro da cena o seu próprio esvaziamento, sobre o qual involuntariamente tendemos a projetar a imaginação. E a imaginação, no contexto da aura em Benjamin, é da ordem das aparições − e o que aparece, já sabemos, se presentifica.
Aquilo que nos olha do fundo falso do objeto minimalista é a própria presença de algo distante, por mais próxima que esteja. É a aparição sensível daquilo que não se nomeia, daquilo que não se sabe, daquilo que não se dá contornos. O objeto minimalista assim solenemente proposto restitui em arte as grandezas geológicas do mundo − efeito tanto mais evocativo e direto nas práticas da land-art, sua tributária e contemporânea −, devolvendo ao homem o olhar do objeto que olha de si para si, espelho. Não nos vemos, é claro, vemos que algo (distante) nos olha e esse efeito, longe de ser distante, está exatamente aqui, agora, dentro de nós. Tremor. Alívio. Sublime.
A segunda instância a ser perscrutada, como foi dito a pouco, reside no espaço tecnológico dos dias de hoje e atende pelo nome de “sublime tecnológico”, conforme Mário Costa[15]. Tal noção circunscreve a arte como experiência, já que animada a partir de dispositivos tecnológicos de processamento e síntese de imagens que em última análise não têm materialidade. Imagens de cálculo, de código, numéricas, portanto imagens mutáveis e fluídas, sem corpo nem superfície de fixação, se apresentam sob a ordem da própria experiência, sem mediação. Se pensarmos em Benjamin outra vez, não há presentificação de algo distante, mas a própria experiência de algo distante (do presente), por mais próximo que esteja. A aparição dessa experiência coincide com a desaparição de duas outras dimensões, ambas temporais: o presente e o passado. O tempo se amplia até a suspensão.
Para Costa, a entrada na imagem tecnológica é da ordem da experiência direta, com a própria imagem, o corpo e a imagem em permuta, em atravessamento, de modo que todas as grandezas tendem a se manifestar. A aparição dá lugar à transparência, o sujeito se desloca do presente e se torna ele próprio distante − de si − na imagem. Em vez de ser impactado pelo terror que redime, o sujeito simplesmente desaparece na leveza do próprio corpo, redimido pela grandeza sem bordas nem pontos de fixação da imagem sintética flutuante. O sublime tecnológico acontece como experiência direta, em tempo real, no corpo do sujeito que é o próprio corpo da imagem. Ao cessar a experiência, cessa também a sublimação.
Por fim, a sublimação será a última âncora, teórica, dos argumentos trazidos nesta seção da pesquisa à respeito, por um lado, da experiência estética, e do conceito de arte, por outro. Cruzando o limiar da modernidade, Marc Jimenez vai necessariamente aportar nos conceitos da psicanálise, que à época, sabemos, teve enorme influência sobre o campo artístico. No entanto, não dá pra falar em psicanálise sem antes falar de Nietzsche − um dos antecipadores da psicanálise moderna, se se pode dizer assim −, e em especial se o assunto é estética. Jimenez não está inconsciente disso e lembra da dicotomia Nietzscheana do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco inclusive naquilo em que tais conceitos podem se relacionar com as pulsões de vida (eros) e pulsões de morte (tânatos) descritas por Freud.
Pois bem, em essência, nos dois autores será sobre esses conceitos duplos que recairão as considerações estéticas. No caso de Nietzsche, a arte é expressão da relação entre o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco que, dizia ele, tomava emprestado dos gregos, “conhecedores dos dois lados da vida”, a luz e as sombras[16]. A obra em questão é “O nascimento da tragédia”, na qual o filósofo revisita os conceitos Aristotélicos de catarse para ampliá-los na dupla “Apolo-Dionísio”. Se o apolíneo corresponde ao limite, à borda, à sustentação luminosa das energias do ser, o dionisíaco é a sua contra-parte, o princípio obscuro, violento, terrível. O jogo entre os dois, como o jogo do masculino e do feminino, é o que dá origem à arte que, na visão de Nietzsche, é o bálsamo que reveste as duras nuanças da vida com a beleza estética[17].
No caso de Freud, trata-se mais explicitamente de revelar a pulsão libidinal, que perfaz o todo de sua teoria psicanalítica, eros como pulsão de vida, ativa e sexual por natureza, tânatos como pulsão de morte, negativa, refreadora, contingente[18]. No entanto, e bem ao contrário de Nietzsche, Freud via a arte como uma sublimação das frustrações, impedimentos e recalques necessários no plano individual para que o coletivo se realize. Na célebre fórmula freudiana, cede-se prazer individual em prol do convívio coletivo, o que resulta, sem dúvida, no mal estar da sociedade. De todos modos, Freud não vê a arte como os gregos a viam e tampouco como Nietzsche a propunha, o que não necessariamente invalida suas proposições: a arte se constrói como recalque-sublimação de tânatos sobre eros, sendo de qualquer modo um triunfo de eros que, apesar de tudo, resulta sempre insatisfeito enquanto pulsão.
A diferença parece residir, claro, no embate entre a euforia nietzscheana, cuja obra se edifica sobre uma super-esperança na redenção do homem, o super-homem como signo máximo, e o realismo prudente de Freud, que preferia assegurar-se de uma certa reserva de melancolia. Não resta dúvida, a partir desta perspectiva, que se ambos os pensadores propunham pares dicotômicos cujas essências em muito se assemelham, cada qual tendeu para um lado: Nietzsche para a exuberância vivificante de Dionísio, Freud para o recato de Tânatos.
De qualquer forma, a questão fundamental aqui está nas relações dos dois conceitos com a experiência estética do sublime de Kant e mesmo com os demais exemplos já trazidos: a catarse, a aura, o ritual. O caso de Nietzsche é auto-evidente, até por utilizar a mesma fonte da cultura grega e por empregar termos semelhantes: sombra e luz, alívio e terror, enfim a obra de arte como meio purificador, transcendente, necessário. Freud por seu lado não deixa de limitar um tanto o espectro de movimentos da arte na medida em que a relega ao signo psicológico de sublimação.
O conceito de sublimação fala de um desvio da pulsão, pulsão (eros, erótica) que encontra um impedimento para a sua realização e que precisa ser recanalizada. A produção artística seria assim um objeto positivo dessa canalização pulsional, na visão de freud, pois é destinado ao coletivo, ao passo que as neuroses, o próprio narcisismo que volta a pulsão erótica para o próprio sujeito, seriam seus desdobramentos negativos, pois destinados apenas ao individual. Fora isso, como sublinha Jimenez, e ao contrário de Nietzsche, Freud não encontra predicados na forma e no conteúdo da arte, sua análise reduzindo a experiência estética apenas e tão somente ao seu mecanismo psicológico de sublimação, o que de resto nem mesmo confere à arte qualquer posto de relevância no funcionamento do social, visto que a sublimação também pode acontecer por várias outras vias que não a estética, a intelectual inclusive.
De qualquer modo, é possível estabelecer pontes diretas do mecanismo de sublimação freudiana com as noções de sublime em Kant. Para isso, é preciso recuar e pensarmos a experiência no plano íntimo do sujeito, mais especificamente no funcionamento de sua mecânica psicológica. O terrível (tânatos, dionísio) deixa-se entrever na desproporção grandiosa do acidente natural ou da grande obra de arte. Ou seja, é do íntimo invisível da natureza, visualmente domesticada pelos olhos do contemplador na forma da paisagem (eros, apolo) que emergem (ou retornam) as sombras – o distante.
No plano do sujeito, trata-se da frustração direta de suas visões ideais, a paisagem harmônica, proporcional, equilibrada, perfeita, que é antes em seu íntimo a esperança, os ideais, os valores coletivos da vida, a felicidade. Diante da visão do terrível, a grandiosidade violenta do mundo, o absurdo, o caos, o medo, a solidão, elementos submersos da paisagem, elementos do íntimo da natureza, opera-se a recanalização da pulsão: ela se torna remissão, piedade, absolvição, ela iguala os homens e os torna fraternos pelos porões da humildade. Em outras palavras, o matizado prazer estético que, ao presentificar algo distante por mais próximo que esteja, produz a sublimação − e se faz, sem dúvida, sublime.
Não por acaso Jimenez situa Freud e Nietzsche no limiar da modernidade ou, melhor dito, nas soleiras do moderno, pois que em ambos não se realizou com clareza a passagem que por exemplo em Benjamin já é plena: o ambiente moderno, como ambiente das tecnologias do movimento, das imagens em movimento, do espetáculo de massas, da serialização de objetos e clichês visuais, tal ambiente não só produz novos comportamentos cognitivos e sensibilidades outras em seus indivíduos como exige da estética, como da filosofia da arte, uma nova postura. No entanto, como propõe Mario Costa, essa reambientação em nada contradiz a possibilidade do sublime como experiência estética. Pelo contrário, ela pode ser o veículo de sua realização direta, sem mediações e, quem sabe, sem desvios nem sublimações.
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[1] Jimenez, p. 117-118.
[2] Jimenez, p. 135.
[3] Costa, p.22.
[4] Jimenez, p. 139.
[5] Aristóteles, p. 62.
[6] Deleuze, p. 76.
[7] Bergson relaciona o impulso vital (misto que reúne tanto manifestações da inteligência como movimentos do instinto em todas as expressões da existência viva) com a própria definição de movimento.
[8] Benjamin, p. 170.
[9] idem, 170.
[10] Benjamin, p. 226.
[11] Cauquelin, p. 44.
[12] Huberman, p. 49.
[13] Idem, p. 55.
[14] Huberman, p . 89.
[15] Costa, p. 22.
[16] Nietzsche, p. 27.
[17] Idem, p. 27.
[18] Freud, 153.