Respirar a cor
Cemitério do Esplendor (2015), de Apichatpong Weerasethakul, é uma experiência de notável extensão cinemática. Como em toda a filmografia do diretor, aqui o cinema acontece por meio de proposições atmosféricas, enlaces climáticos, sensações. A imagem ela mesma não protagoniza, não rivaliza com quaisquer dos muitos e matizados elementos que compõe o filme, no que recai não uma crítica, mas uma particularíssima visão de cinema que inevitavelmente nos impulsiona, por contraste, a refletir sobre o atual estado do mundo de imagens, em especial a narrativa de matriz hollywoodiana, centrada na velocidade e na ação. Mas se Apichatpong não faz oposição frontal ao cinema mainstream, tampouco deixa de anotar, na cena em que traz o trailer de um filme repleto de ação, vilões, heróis, romances e efeitos especiais, o contraponto daquilo em que acredita: ao término da projeção, misteriosamente o público se põe de pé e assim permanece, contemplando em silêncio a tela em branco, o que virá?
É que neste Cemitério do Esplendor Apichatpong realiza a quintessência de sua arte: o domínio do tempo a partir dos ritmos internos na concepção de cada plano. As cenas se acomodam de forma enigmaticamente confortável ao corpo do filme. Os planos duram, se estendem através das sensações, nunca dependendo exclusivamente da imagem. A austera beleza da fotografia e a minúcia das composições estão intimamente ligadas aos ambientes físicos, enlaçadas às muitas camadas do arranjo cenográfico, que surge repleto de significações. As qualidades literárias do roteiro se manifestam com sutileza, ora descrevendo um ambiente, ora despojando uma ação, ora abordando um diálogo que além dos protagonistas inclui o vento e o mundo todo ao redor. Mas é na sobreposição de múltiplas temporalidades, coração do cinema de Weerasethakul, que a profundidade narrativa alcança o extraordinário: ao deixar ver o improviso de um pequeno hospital entre os vestígios de uma antiga escola infantil que não obstante está em obras para logo ceder espaço a uma empresa de fibra ótica. É por meio desta espécie de dissolução dos elementos essenciais do filme sob os mais variados modos de manifestação sensorial que o diretor parece moderar a intensidade rítmica das cenas. E o filme, deste modo, permanece o tempo todo em suas mãos, num cadenciar onírico, constante, pulsando como um organismo vivo.
De fato, o que Apichatpong parece desejar não é falar de algo, mas convidar a uma experiência sobre o que quer falar, pois falar apenas não basta. Por este motivo o próprio roteiro envolve uma trama e mesmo tensões dramáticas, mas na forma episódica em que são postas deixam-se permear por outros modos de narrar, por outras linguagens e inclusive pela suspensão, quando a narrativa simplesmente se ausenta. Nestes momentos emerge o mistério, o enigma, seus temas por excelência, em operação que é tão engenhosa quanto sutil: como de costume Apichatpong dilui uma sorte de mitos, sonhos e fantasias nas águas do seu modo realista e direto de filmar. O resultado é que tudo se torna formidavelmente singelo e plausível. Situações cotidianas se vêem envoltas por uma graça de conto quase infantil, ao passo que os sonhos surgem dotados de naturalidade e uma certa gravidade que caracteriza as coisas reais, que vivem na luz do dia, sonhos despertos se poderia dizer. Assim o roteiro entretece referências do pensamento filosófico e científico atuais com elementos da espiritualidade e cultura tailandesa, tocando também no mundo tecnológico em que vivemos. Tudo isso sem se deixar prender por conceitos ou metas narrativas, chegando a blindar poeticamente o universo ficcional da obra contra as inevitáveis pretensões do intelecto, maneirismo comum no cinema autoral.
Isso não quer dizer que o diretor não fale de seu tempo, não proponha uma maneira de ver o mundo, que essas construções não devam ao cinema e à arte de hoje, isso não se discute. É que o modo desprendido como ele lida com todo esse rico material, despojando-o de hierarquias entre real e imaginário, resulta por desencorajar o mero entendimento racional: Cemitério do Esplendor é um filme para ser acima de tudo experimentado, como um lugar, uma instalação. Claro, a linguagem das artes, na qual o diretor também atua, tem papel importante na forma geral do filme: muitas das cenas se organizam a partir da lógica ambiental. A começar pelo set principal, o salão onde estão dispostas as camas hospitalares em que dormem os soldados. Aqui o elemento humano aparece ligado à atmosfera do mundo manifesta na variação da luz, não por acaso intermediada pela tecnologia. E a tecnologia em Weerasethakul está em simbiose poética com o humano, ponte para o extraordinário, tendo o corpo e a psique como antenas. Toda fantasia, como toda realidade, partem do ser e a ele retornam.
No entanto parece insuficiente para o diretor enunciar, numa narrativa comum, o desejo de que os soldados se curem por meio da produção de sonhos bons. Para Weerasethakul é preciso viver a idéia, ter dela a experiência, é pelo corpo que se vive o mundo, também a arte e portanto o cinema: reduzindo ao mínimo o movimento interno da imagem, ele transforma o tempo numa respiração, respiração que coincide com a cadência das cores, com a imobilidade dos soldados cujos sonhos, sentimos, se propagam em tons através do ambiente. Tal respiração-sonho, é claro, não ficará restrita aos pacientes: ela logo se revelará nas ruas, na natureza, em sequência que dissolve, uma vez mais, quaisquer hierarquias: mesmo um mendigo na rua, uma vez imerso na mesma luz misteriosa que provém de mundos e tempos outros, se vê dignificado pela aura de pertencer. Aqui parece confirmar-se a posição do diretor, reiterada em algumas entrevistas: o sonho é tão importante quanto o que chamamos de real, de modo que pertencer (ou não pertencer) a qualquer hierarquia material não nos despoja do mundo sonhado ou imaterial, que todos experienciamos, em qualquer circunstância — afinal, o mundo nos respira.
Resta indagar sobre que tipo de cura nos quer falar o diretor, especialmente ao escolher uma protagonista que manca de uma perna para cuidar de um paciente acometido pela estranha enfermidade de um sono sem fim. Naquele ambiente todos têm a sua realidade sob suspeita ou todos de fato são tão reais quanto fantásticos. É certo que Cemitério do Esplendor celebra uma espécie de festa do imaginário, lugar onipresente neste mundo e do qual talvez estejamos um tanto apartados. Corpo e espaço estão em questão na medida em que o repouso cármico dos soldados parece influenciar também a cura de quem se propõe a cuidá-los. A belíssima sequência em que a protagonista é conduzida pela colega vidente a reviver em meio ao bosque um castelo repleto de inimagináveis riquezas do passado não poderia ter outro desfecho: a catarse emocional expelindo a própria história encarnada no corpo, mais precisamente na perna enferma. Não se trata então da cura de alguma doença, como se poderia pensar, mas da cura em seu sentido mais essencial: a simples e natural transfiguração do tempo, a cura como passagem, no corpo orgânico do homem e no corpo sutil do espaço, o que é bem sintetizado na figura de uma espécie de célula que surge fluindo entre as nuvens no céu.
Só depois disso é que Apichatpong sente que é tempo para falar do olhar, assunto tão desgastado. Consciente disso, parece, escolhe a hora certa e uma medida mínima. Afinal, no contexto desse vasto universo de sonhos e sugestões, o olhar não se faz apenas no que é visível, senão e mais do que tudo no que é sensível e imaginável. Abrir os olhos, então, é abrir-se para outras dimensões que podem estar aquém e além dos olhos, fluindo através do corpo e mesmo da tecnologia. Pois dormir já estamos no real. E para Apichatpong Weerasethakul esse sono é antes anestesia, metáfora talvez do cotidiano informatizado, do comportamento objetivo e frenético, orientado de forma tóxica e exclusiva à matéria. Paradoxalmente, o antídoto parece ser o próprio sono, agora no sentido literal, pois que o sono é nutrição que expande os sentidos, que integra o ser ao seu lugar. Mas, como Apichatpong quase sempre prefere não dizer, seu cinema nada afirma em conclusivo, convidando a um encontro com o tempo, a experiência íntima da respiração, o ar tomado pela cor, expirando-nos então mais despertos. Para ele, talvez sejamos não mais que momentos na grande respiração de um mundo cuja existência ora se sente, ora se pressente e ora simplesmente se vê.
* Artigo originalmente publicado na revista Medium, em janeiro de 2018.