Entre a forma e a intenção
The Square (2017), obra mais recente do sueco Ruben Östlund, pode ser menos um filme sobre o mundo da arte, como faz parecer, do que um filme sobre o mundo contemporâneo em geral. O longa anterior do diretor, Força Maior (2014), é um bom exemplo daquilo que, mais ao fundo, parece interessá-lo: ao confinar um casal com dois filhos pequenos numa estação de esqui, ele cria uma oportunidade única para sondar o território das relações entre cultura, moral e os instintos primários de sobrevivência. Sabe-se, além disso, que Östlund vem de uma exitosa carreira como fotógrafo e diretor ligado aos esportes de inverno europeus, experiência que é apropriada como contexto, com significativa adequação visual, em suas ambições no campo da ficção.
De maneira semelhante, The Square tem sua gênese numa instalação homônima produzida por Östlund e o produtor Kalle Boman em 2015, no Vandalorum Museum, na Suécia. A obra, que partia de um quadrado demarcado no chão, cujos domínios constituíam, em tese, “um santuário de confiança e cuidado”, tornou-se o próprio argumento do filme, replicando na narrativa os sentidos colhidos da experiência. Além disso, situações vivenciadas pelo diretor em visitas a diversos museus foram parar também no roteiro, em testemunho do procedimento algo “documental” pelo qual Östlund concebeu o filme. A tensão que resulta é indissociável da originalidade de seu cinema: está todo o tempo lá essa estranheza, de uma ironia decididamente mordaz, que nos deixa pouco cômodos diante das aparências.
Afinal, Östlund é hábil em produzir colapsos na normalidade. E aproveita-se muito bem deles. Ainda que não mostre nada além do verossímil e cotidiano, algo perturbador está sempre presente e, pior, em movimento de avalanche. Tais qualidades talvez justifiquem a Palma de Ouro em Cannes e a indicação ao Oscar de filme estrangeiro amealhadas por The Square. Mas não é só isso. Apesar de descartável, o subtítulo “A arte da discórdia”, que recebeu no Brasil, não deixa de ser elucidativo. No limite, é sobre o estado de coisas contemporâneo, a guerra cultural em que nos achamos enterrados até o pescoço, no centro da qual estão instalados todos os mal-estares da civilização, as desigualdades, os extremismos e as desproporções de todos os tipos e gêneros, de que o mundo da arte, aí sim, se faz um simulacro perfeito.
Vamos então à sinopse. Christian (Claes Bang) é o curador de um importante museu de arte contemporânea em Estocolmo, às voltas com a abertura da exposição intitulada “O quadrado”. Ele se complica ao ter o celular roubado e, por sugestão de um assistente, distribuir uma carta ameaçadora num condomínio de subúrbio, apontado pelo rastreador do aparelho como o possível paradeiro do ladrão. O drama de Christian se desenrola em paralelo à preparação da exposição, em estrutura que soma um certo andamento aventuresco – ou será farsesco? – à narrativa. A trama aborda passagens do dia a dia do museu e da vida pessoal do protagonista de forma algo episódica, quase como se fossem esquetes. Todos articulados de maneira nada inocente, claro, levando-nos até o centro da crise do personagem principal.
O humor entremeia toda a narrativa, tendo a ironia como comentário, o modo pelo qual Östlund nos amortece a queda à complexa verdade das situações: primeiro a graça, em seguida o mal-estar. Mas essa relação natural e saudavelmente tensa entre realismo e sátira nem sempre funciona, como também falha em Força Maior o esquema que vai do instinto à moral, destinado a um rápido esgotamento. É discutível a disposição do diretor em levar o sarcasmo às últimas consequências, o que o faz perder o timing em momentos-chave do filme. Se o recurso de tardar o corte leva a uma suspensão banal da cena, fazendo surgir aquilo que ela pode conter de bruto, hilário ou absurdo, tardá-lo demais envolve o risco de ver o encanto esfumar-se, deixando a descoberto quaisquer intenções perversas do autor, um tanto ao estilo Lars Von Trier, que persiste no incômodo pelo incômodo e não pela consciência de algo. A diferença pode ser de milímetros na forma, mas é de abismos no que tange ao sentido e intenção.
Dois exemplos dão a medida com que tal recurso pode competir pelo êxito ou simplesmente pelo empobrecimento de certas passagens. A cena em que o performer Oleg (Terry Notary), incorporando um arquétipo primitivo, irrompe em progressivo descontrole num jantar de gala para ricos doadores do museu é irrepreensível em seus 12 minutos de duração. A perícia de Östlund para deslizar a realidade na ficção se potencializa na lógica da performance, que vai pondo abaixo o distanciamento em relação aos convidados até os limites do suportável, instigando-os em seus até então bem comportados ímpetos de auto-preservação. O absurdo se plasma com a fantasia – a nossa e a dos convidados – numa formidável transparência, em recorte que responde pelo ponto mais alto do filme.
O mesmo não acontece com a campanha de marketing que é organizada em paralelo para a promoção da exposição-título. Desde a postura dos criativos da agência responsável até a abordagem da menina mendiga que culmina em escândalo nas redes sociais, nada escapa de um exagero de proporções caricaturais, cujo efeito é diametralmente oposto ao desejado: o conflito perde a ambiguidade de suas tensões internas, as quais são o trunfo maior de Östlund, e esvazia-se na abjeção. Aqui é importante uma ressalva: por mais grotesca que a própria realidade se apresente, e situações tais têm pipocado cotidianamente pelo mundo afora, isso por si só não garante uma boa dramaturgia, dado o distanciamento necessário ao ato de representar – arte e vida se assemelham, mas não se equivalem. Como em Força Maior, o excesso de carga sobre o objeto termina por anulá-lo, cansando a boa vontade do espectador.
É nessa mesma tangente das medidas e proporções que o filme volta a balançar em suas fragilidades de estrutura, sem no entanto chegar a ruir. Se o foco estreito de Força Maior se mostra logo insuficiente para sustentar o argumento, em The Square o diretor parte para o outro extremo, abrindo múltiplas janelas de discussão. O problema de lançar mão de tantos acontecimentos e reviravoltas, no afã de trazer para o roteiro todos os assuntos que sensibilizam o mundo atual, é obviamente o risco da superficialidade e da dispersão. Quanto ao primeiro, Östlund realmente se sai bem, pois é capaz de atar os pontos numa trama suficientemente complexa, apesar desse excesso de conteúdos ditar um ritmo de montagem que dificulta a contemplação. Com isso certa dispersão se torna inevitável e o resultado é um filme que agrada mais como entretenimento, pois suas marcas se apagam com facilidade após a projeção.
Tal inconstância produz como reflexo uma distribuição titubeante das tensões relativas às diversas subtramas, umas com mais energia e eficácia, outras menos. O envolvimento da jornalista (Elisabeth Moss) com o curador é um prato cheio e uma provocação pontual aos argumentos feministas mais extremos. Merecem destaque as reações de Christian quando, procurado por Anne no museu, num último recurso persuasivo, é por ela acusado de usar sua posição influente para seduzi-la. Num primeiro momento intimidado pela aparente gravidade do que é dito, em seguida ele se dá conta do estratagema e lhe devolve elegantemente a questão: não terá sido essa mesma posição de influência o objeto de sua atração?
O conflito não perde força mesmo que pensemos na maneira um tanto esquemática como Östlund o constrói. Ele nos deixa ver apenas as faces mais caricatas de Christian na primeira metade do filme, para depois apresentá-lo na intimidade. É de novo um recurso discutível, e que pode ressentir o espectador, mas que cumpre a sua função: o estereótipo do branco e poderoso serve para atiçar fogo nos mais ansiosos, só para desnorteá-los em seguida ao apresentar o curador também como pai, separado, eventualmente consciencioso e dedicado às filhas pequenas. Tais elementos equilibram o personagem em tons mais matizados e preparam o terreno de críticas ao politicamente correto, cuja culminância se dá na crise existencial de Christian, deflagrada pela confusão do telefone roubado. Apesar dos tropeços, fica difícil culpar o curador por todos os pecados do mundo.
Mas ainda que sejam consistentes as linhas que conduzem os conflitos de Christian, é possível que a trama não se sustentasse com tal vigor não fosse um elemento. O simbolismo do quadrado que é o quadrado do mundo da arte, mas que é também o quadrado de cada um de nós e de nossos interesses particulares, é a fonte de toda a inteligência do filme, espécie de leitmotiv visual. Sua amplitude vai além da metáfora de um tempo que não lida bem com limites tanto quanto com liberdades, diferenças e ideais. O quadrado opera na dramaturgia a mesma função abstrata que opera nas artes, que é de onde ele vem: sua natureza geométrica, de uma só vez exata e fluida, sintética e hermética, funciona como ponto de referência para os dilemas em cena. Sua onipresença equivale à evocação do inapreensível, do contraditório, para os quais não há explicações simples ou definitivas – eis provavelmente a grande sacada de Östlund.
Mesmo assim, no que diz respeito à arte em específico, o quadrado não ajuda a esclarecer até que ponto o diretor quer de fato produzir debate ou provocar apenas por diversão. Afinal, críticas como as da obra que é varrida pelo pessoal da limpeza e do espectador com síndrome de Tourette que desconcerta a fala de um artista em um auditório lotado, não obstante serem situações que realmente justificam bons risos a posteori, no fundo não trazem qualquer novidade para além dos lugares-comuns que circulam dentro e fora do meio e que são de conhecimento geral. Os problemas e limites da arte contemporânea, por certo, não são menos autoevidentes do que aqueles de outras áreas da atividade humana, a arquitetura, a ciência, a gastrononia? Não são todos reféns do comercialismo, do relativismo, do virtualismo, da tecnologia e do marketing que movem os dias atuais? Ou há algo novo sob o sol que ainda não nos disseram?
Se isso tem algum fundamento, será preciso esperar pelo próximo filme de Östlund para sabermos se ele está disposto a deixar o esporte de lado para colocar-se de forma mais contundente, em particular se desejar falar de arte outra vez. Duchamp e Warhol eram bons pintores e sabiam muito bem o que estavam fazendo quando abandonaram os suportes tradicionais para as práticas críticas que os deixaram famosos. O mesmo não se deu com Damien Hirst, o maior polemista das artes dos últimos anos, que ao ser desafiado pela crítica britânica não foi capaz de pintar mais do que meia dúzia das suas usuais caveiras em fundo escuro. O truque, dessa vez, não funcionou. Mas tudo bem, sempre há quem goste. No caso de Östlund, se a superfície ácida de seu cinema é apenas o melhor que ele pode dar, com certeza não terá sido de todo mau. A crítica pela crítica, afinal, estará sempre entre os passatempos diletos das multidões.
* Artigo originalmente publicado na revista cultural Mínimo Múltiplo, em junho de 2018.