Um instante para sonhar

A arte contemporânea deve muito ao trabalho de artistas que, entre os anos 60 e 70, decidiram sair de seus estúdios para travar contato com o mundo real. Desse ímpeto digamos histórico desenvolveram-se movimentos fundamentais como a arte conceitual, a performance e o happening. Em todos esses casos, os artistas respondiam de diferentes modos a necessidades comuns de sua época: o triunfo do modernismo havia encerrado a atividade artística a um gueto especializado, fechado em torno de críticos e curadores. A arte se via assim confinada como objeto sagrado entre as paredes dos museus e galerias, distante do público e da realidade. Era com essa ordem que os artistas conceituais, performáticos e intervencionistas que atuavam a partir dos anos 60 desejavam romper. Sua intenção era reaproximar a arte da vida comum, por isso ganharam as ruas e ocuparam os espaços públicos em busca de novas formas de diálogo com o mundo real.

As artistas Isabel Sommer e Vera Junqueira preferem definir seu trabalho em torno do projeto “Ando Sonhando” como uma intervenção urbana, no sentido de que é efetivamente nas ruas, em contato com as pessoas, que a obra se realiza. De material e palpável há pouco, de fato. São as reações provocadas, os efeitos nem sempre visíveis e mensuráveis que realmente importam aqui. Nas palavras das próprias artistas, “o objetivo da ação é afetar as pessoas de alguma maneira”, criando um momento de ruptura com o cotidiano. Para tanto se justifica o primeiro recorte em processo: foram definidos cinco dos principais e mais movimentados terminais de ônibus urbano de Porto Alegre. Lugares de trânsito, de passagem, onde ninguém vai pelo simples prazer de estar. Espaços de circulação que nunca são destino mas ponte, caminho para se chegar noutra parte, momento irremediável na transposição das agendas e no cumprimento das tarefas de centenas de milhares de pessoas todos os dias.

Partindo desse contexto, a proposta da dupla de artistas apresenta um diálogo vivo com os precursores da intervenção, do conceitualismo e da performance, atualizando tais experiências no mundo de hoje. Trocam, por exemplo, a recusa política do atelier em nome das ruas, que caracterizou a arte muitas vezes militante daqueles tempos, por um trânsito aberto e fluido entre a dimensão criativa do estúdio e a vida real. Para ligar esses dois mundos, as artistas propõe um pequeno jogo relacional em torno da noção de “sonho”, na acepção mais direta e corriqueira do termo. Em linhas gerais, a ação consistiu em percorrer as estações de ônibus, gravador em punho, buscando convencer as pessoas à revelarem alguns de seus sonhos ou objetivos de vida. Os sonhos assim coletados na realidade retornaram para o atelier e se transformaram em ícones, sonhos-imagens que por fim foram instalados no interior de 3 mil monóculos, desses que foram muito populares como souvenires turísticos na década de 80.

Claro que a escolha afetiva do monóculo não é casual. Ela se contrapõe de modo sutil e ao mesmo tempo hábil ao mundo real que as artistas tiveram de enfrentar para conseguir das pessoas os testemunhos de seus sonhos. No mundo da produtividade e da eficácia tudo está em trânsito e todos têm pressa. A razão dá o norte e a objetividade se torna um instrumento essencial de navegação. Emoções, memórias, desejos e instintos devem ser gerenciados para que não atrapalhem o planejamento. Algumas pessoas nunca os perdem de vista, é verdade, mas há quem construa barreiras, proteções, barragens inteiras que muitas vezes os alienam de si e do mundo, como espessas couraças. Foi um pouco de todas essas reações que as artistas encontraram em campo. Entre metas minuciosamente ponderadas, sonhos distantes ou simples devaneios, desejos profundos e ambições das mais variadas estaturas, foi também preciso encarar um número relevante de expressões incrédulas, por vezes irritadas, recusas e esquivas que apenas dão prova dos níveis de tensão do tempo em que vivemos.

Por outro lado, a etapa de devolução dos sonhos, como foi apelidada pelas artistas, encontrou um contexto mais favorável ao contato, revertendo amplamente a matemática das recusas da fase anterior. Os monóculos coloridos sem dúvida funcionaram como dispositivos semelhantes a pequenas máquinas do tempo, amaciando a subjetividade do público pela via afetiva e assim criando uma abertura para o que vinha em seguida: o sonho. É deste modo que o círculo da ação se fecha: os sonhos recebidos pelo público na fase final do projeto são os sonhos oferecidos pelos voluntários lá no início, colocando as artistas, deste modo, como agentes intermediadores ̶ ou intervencionistas ̶ dessa troca. Seus esforços vão se manifestar na performance, persistindo de abordagem em abordagem em busca de quem se dispõe a colaborar, ofertando seu sonho. O processo se desdobra na própria fricção com o público, suscitando reflexões acerca dos signos mediadores das trocas e das relações nos dias de hoje, onde a “busca dos sonhos” pode se mostrar apenas um pretexto.

A psicanálise contemporânea associa o sonho à noção de desejo e a isso costuma adicionar uma interrogação: nós realmente sabemos, e queremos, aquilo que desejamos ou dizemos desejar? Os processos de análise psicanalítica costumam seguir por esse caminho, ensinando o sujeito a duvidar de seus ditos sonhos, até que ele possa se apropriar de seus reais desejos, estes muitas vezes soterrados em meio à atribuladas histórias de vida, compromissos cotidianos, projeções idealizadas e exigências externas. De acordo com as artistas, esse nunca foi um objetivo nominal dentro do projeto “Ando Sonhando”. Mas elas estavam conscientes de que, optando pelo sonho como dispositivo de entrada, inevitavelmente a ação tocaria a ponta do iceberg da estrutura do sujeito. E a partir desse momento, quer se ignore ou não, se estaria produzindo uma fissura por onde o processo de interiorização seguiria reverberando, para além da intervenção que o originou. Mas o quê cada participante poderá produzir, subjetivamente falando, a partir do que lhes sucedeu, já não é matéria para as artistas, cuja meta ficou cumprida: tocar, afetar, produzir uma diferença na realidade dos sujeitos. Um abalo suave e gentil, suficiente para sensibilizar, nem que seja por um instante.

 

* Texto de apresentação do catálogo da ação de intervenção urbana “Ando Sonhando”, das artistas Vera Junqueira e Isabel Sommer, realizada ao longo de 2014.